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O Campeão que nasceu no dia de Natal

Nasceu em Ovar, no dia de Natal, em 1902. Mais de meio século depois do seu desaparecimento, José Soares Santa, imortalizado com o nome de Santa Camarão, continua a ser um dos mais altos pesos-pesados do boxe mundial. Tinha 2,06 metros e, talvez, por isso, Beatriz Costa disse dele, um dia, que era “homem a mais”. Lutou no Madison Square Garden, em Nova Iorque, e entrou em filmes de Hollywood.

BMO

Nos anos 1920 e 30, Santa Camarão, um fragateiro de Ovar, batia-se no ringue com os melhores do seu tempo, um pugilista como Portugal nunca mais teve. O vareiro foi um desportista célebre, figura pública nacional da craveira de um Carlos Lopes, de uma Rosa Mota ou de um Eusébio, mas em Ovar é o lado humano que perdura. José Soares Santa, “Camarão” por alcunha de família, é um filho dilecto da terra: consagrado na toponímia, no museu local, no espólio fotográfico e nos recortes guardados na Biblioteca Municipal, na imprensa e na memória dos vareiros.

Amigos e vizinhos que o conheceram pessoalmente não esquecem os atributos físicos do “Homem-Montanha”, como ficou conhecido, mas destacam o “seu enorme coração”. João Costa conheceu-o bem, em especial na fase em que o pugilista vareiro regressou a Ovar após aventuras no Brasil, Alemanha e Estados Unidos da América (EUA). “No dia de aniversário, que era no dia de Natal, estreava um fato novo, punha uma garrafa de vinho do Porto na mesa e pagava um café a todos os amigos”. Joaquim Pereira foi seu barbeiro e lembra-se que também lhe cortava o cabelo nessa ocasião.

“O alfaiate era o falecido José Matos que tinha de subir a um banco para lhe tirar as medidas (risos)”, recorda Joaquim, acrescentando que também os sapatos eram feitos de encomenda porque calçava perto de 50”. Conta com orgulho que é ele quem ainda hoje dá as indicações do cabelo quando lhe esculpem o busto: “Sentava-se e pedia sempre curtinho, à boxeur“, conta. “Era muito grande, mas era um coração ainda maior”, sublinham todos os que se juntam para falar de José Santa, com saudade e emoção.
Numa casa térrea do antigo Largo da Poça, hoje Largo Santa Camarão, viveu sempre Ana Picado. Ouviu falar “dele” e veio logo à porta: “lembro-me dele, era muito brincalhão, mas muito simples e estava sempre pronto para tudo”.
Ao lado, Manuel Rico tinha uma mercearia na mesma rua, onde o pugilista era cliente assíduo. “Ele não, uma senhora de idade que estava com ele é que ia às compras”, esclarece Rico que lhe desvenda os gostos. “Não era pessoa de gulodices ou álcool, era muito simples”. Mas não prescindia de tomar o seu café e jogar dominó. Joaquim Parreira conta com humor que quando o jogo não lhe agradava, “como tinha as pernas grandes, dava com os joelhos na mesa e desarrumava as peças todas”.

[give_form id=”70395″ show_title=”true” show_goal=”false” show_content=”above” display_style=”button” continue_button_title=”Está a ler um artigo gratuito. Ajude-nos a continuar. Clique aqui!”] João Costa não deixa fugir o assunto: “O Zé Santa era tão bondoso e ingénuo que mesmo nos combates que travou pelo mundo fora, era preciso baterem-lhe muito, até começar a escorrer sangue, para se enervar e, finalmente, arrumá-los com uma “marretada”, por KO. Ele era assim”.
Vitor Campos tinha uns oito ou nove anitos e lembra-se que ali ainda havia o Café Neves (hoje é uma lavandaria) e, “uma vez, ele estava à porta e meti-me com ele: oh santa, você foi um pugilista famoso, mas eu não tenho medo nenhum de si. Ele olhou para mim e disse: ‘Para ti, bastam dois dedos’. E meteu-me dois dedos da mão direita numa articulação do meu ombro e ainda hoje não sei que jeito fez que eu aninhei logo no chão”.
As andanças pela América deram-lhe conhecimentos técnicos que depois de retirado raramente usava. João Costa confirma que ele fazia essa “habilidade” a muita gente. “Mas era para a brincadeira, sem magoar”. No mesmo Café Neves, João Costa também presenciou um episódio que o marcou: “Um tal Domingos do Leite, pessoa um tanto desagradável, um dia pegou-se com o Santa e ameaçou-o: ‘Vamos ali para o Matadouro e eu dou-te com a manivela do carro que te mato’. O Santa olhou pra ele e reparei que até lhe vieram as lágrimas aos olhos, possivelmente só de pensar que lhe punha as mãos e o esmagava. E lá do alto, respondeu-lhe: ‘Vai-te embora, vai, vai’. Como quem o avisa enquanto é tempo, porque esse Domingos era um homem pequeno e não aguentaria um encontrão, sequer. Era a bondade dele. Até teve pena”.
Lembrar Santa Camarão, 118 anos depois do seu nascimento, é, para quem o conheceu, uma oportunidade de reflexão sobre alguém que foi um exemplo de valores hoje tão em voga, como o respeito e o ‘fair-play’, por exemplo. Num tempo de poucos recursos conquistou um lugar cimeiro no boxe, de prestígio e dignidade, respeitando os adversários e contribuíndo para reforçar a auto-estima dos portugueses, em especial os emigrados na América, enfrentando os campeões de então, com melhor preparação técnica, muitos dos quais venceu no ringue.

De Ovar para o Tejo
Na vila de Ovar de inícios do século XX as oportunidades eram escassas e então seguiu para a capital com o objectivo de aprender o árduo trabalho de fragateiro, ofício de seu pai e de um tio, ou seja estivador de fragatas, barcos do Tejo. O seu porte imponente não passou despercebido. Após uma breve incursão na luta, dedicou-se ao boxe e aperfeiçoou o seu golpe de direita, que ficaria para a história da modalidade como “Gancho de Deus”. Rapidamente, em meados dos anos 20, tornou-se campeão nacional de todas as categorias da modalidade, título que manteve consecutivamente durante sete anos.

Partiu para o Brasil em 1926, mas esta primeira experiência internacional foi mais benéfica para empresários oportunistas que se serviram da sua humildade e lealdade para o explorar. Segue para os Estados Unidos da América, onde alcança uma eufórica sucessão de 12 vitórias, assim como um total de 32 combates triunfantes que o colocaram numa posição de ídolo desportivo, que as qualidades humanas reforçaram e popularizaram. Não foi por acaso que o azeite da marca “Triunfante”, consumido nas residências dos portugueses emigrados na América, ostentava, nas latas de folha onde era comercializado, a efígie do pugilista a fazer músculo, sendo rebaptizado de azeite “Santa”.

Alvo de poemas e homenagens, casa com Mary Loreto, uma luso americana, em 1932, e além de participar noutro filme, protagonizado por Mirna Loy e Max Baer, campeão americano de boxe (The Prizfighter and the Lady”), e enfrentou, após uma sucessão de vitórias estrondosas, o próprio Baer e o colosso Primo Carnera, campeão da Itália, que tinha menos 1 cm de altura e era conhecido como “a montanha que anda”, futuros campeões mundiais. Participou em “Amor no Ringue”, filmado em Berlim, no qual a língua portuguesa foi pela primeira vez falada na Sétima Arte.

Após nove anos de uma carreira memorável (1925/1934) regressa a Ovar. Joaquim Fidalgo conta que quando o Santa chegou da América “foi uma sensação”, porque trouxe a mulher que era muito moderna. “Vinha de outra realidade, vestia calças, andava a cavalo e fumava. Foi um pequeno escândalo”.
Além de ter tido uma curta experiência de proprietário de um café, Santa foi pai de Renaldo, a quem os locais chamavam de “Arnaldo”. Ana Picado lembra-se bem das brincadeiras no recreio da escola: “Quando ele se aproximava começavamos a cantar: Oh Arnaldo come o caldo, não senhora que me escaldo, não senhora que está frio, vai lavar as mãos ao rio e ele vinha atrás de nós”.

Mas a pequena terra portuguesa revelar-se-ia de horizontes muito curtos para Mary, que, em 1949, decide regressar aos EUA com o filho adolescente. O “Renaldo tinha uma certa queda para a pintura e, da última vez que esteve em Ovar, ofereceu uma auto-retrato pintado por ele a cada amigo de escola”.
Começou a constar-se que o Café Ideal era do Santa Camarão e rapidamente se transformou num local de peregrinação obrigatória para quem vinha a Ovar. “Paravam aqui camionetas com gente de todo o lado para o verem e tirarem fotografias com ele”, lembra João Costa. Ele acedia a todos com um sorriso nos lábios e uma paciência olímpica. “Pegava nos visitantes, um em cada braço e deixava-se fotografar assim. Deve haver centenas de fotografias dele nesta pose por esse país fora”, aponta João Costa.

O boxe ficou para trás, mas continuava a ser um apaixonado pelo desporto, do futebol e da sua Associação Desportiva Ovarense, em particular. “Era um grande adepto da Ovarense”, assevera Carlos Campos. “Onde a equipa ia ele ia atrás e nós íamos com ele”. João Costa recorda-se de uma vez que foi com ele e “com o meu pai a São Roque onde a Ovarense ia jogar com a equipa de lá”. Chegaram os três juntos mas, entretanto, na entrada, separaram-se. “Ficamos sem saber dele, porque eu e o meu pai fomos na bancada. Mas logo ficámos descansados porque sabíamos perfeitamente onde ele estava, já que o Santa via-se bem, ao longe, no meio daquele gente toda a acenar para nós”, lembra João Costa, a rir.
O José Costa estava na Guiné a cumprir serviço militar quando a notícia caiu como uma bomba, no dia 5 de abril de 1968. “A mensagem da morte dele foi enviada em código de Morse para todo o império português do ultramar naquele tempo. Era grande”.

O monumento

Em 2010, a título póstumo, a figura e carreira de Santa Camarão foram homenageados pela Confederação do Desporto de Portugal como uma das 100 grandes carreiras portuguesas, durante as comemorações do centenário da República. O Governo Português atribuiu-lhe ainda a Medalha de Bons Serviços Desportivos, também a título póstumo.
Quatro anos antes, em 2006, no Dia do Município, a Câmara Municipal de Ovar homenageou-o, implantando no Largo baptizado com o seu nome um monumento da autoria do artista plástico Emerenciano Rodrigues, também nascido em Ovar e praticamente vizinho do homenageado.

Santa Camarão conheceu o Largo onde nasceu como o Largo da Poça, mas João Costa, um dia, falou com o então presidente da Câmara Municipal de Ovar, Armando França, sobre a possibilidade de dar-lhe o nome do pugilista que ali nasceu e viria a falecer. “O Doutor Armando França acedeu e aqui estamos”, referiu sem deixar de reparar que “a casa deste famoso ovarense está em avançado estado de degradação, não se antevendo nada de bom”.

Herói da BD

Em 2017, Santa Camarão seria resgatado ao esquecimento por uma banda desenhada de um conterrâneo a viver em Lisboa – onde existe, junto ao Jardim do Campo Grande, uma Rua José Santa Camarão.

“As pessoas, em Ovar, identificam-se muito com o Santa. Cresci a ouvir contar estórias das suas proezas, era tema de conversa com frequência e motivo de orgulho, claro. Acaba por ser uma coisa identitária”, admite Xavier Almeida, 37 anos, o autor do livro “Santa Camarão” (edição Chili com Carne) e artista plástico. Apesar de privar desde miúdo com esse semi-culto local daquele que é hoje considerado o maior pugilista nacional de todos os tempos, Xavier apenas se sentiu impelido em contar a sua história a partir do momento em que se apercebeu o quão oculta permanecia tal figura no resto país. Uma “estória triste, mas com sentido épico”, como salienta o ovarense Xavier Almeida.
Aos desenhos de Xavier, juntou-se o argumento adaptado do caderno autobiográfico “A vida de José Santa Camarão contada por ele mesmo”, com os diálogos escritos por Pato Bravo – alter ego do cantor B Fachada.

Paulo Ramos / DA

Na foto: Joaquim Fidalgo, Carlos Campos, Joaquim Pereira, João Sineira, Joaquim Parreira, João Costa, Vitor Campos, Ana Picado e Manuel Rico, amigos de Santa Camarão

-Texto: Luís Ventura

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