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Cortegaça: Uma família entre a fuga à paranóia e a lição planetária

Sandra Marques tem 42 anos e vive na vila de Cortegaça com o marido, de 47, e dois filhos. Ela já se encontra em recolhimento voluntário há três semanas com o Gustavo, de quatro anos, e o marido Nuno seguiu-lhe o exemplo na passada segunda-feira, juntamente com o filho mais velho, Simão, de 10.

“Fui uma das que não levou isto a sério no início. Não era das piadéticas, mas não contava chegar a este ponto, em que se vê o mundo inteiro em ‘stand-by’. Ao ver as imagens de satélite sobre a atmosfera da China, agora mais limpa, e sobre os canais de Veneza, mais transparentes, parece que isto foi um aviso do planeta – de que estávamos a atingir o limite e não andávamos a fazer a nossa parte”, disse Sandra à Lusa.

A empresária antecipa que os efeitos práticos dessa aprendizagem só se tornarão evidentes “na próxima geração”, mas defende que qualquer reflexão séria neste momento já demonstra que “a forma de viver humana estava muito concentrada no consumo” e que a pandemia veio equalizar a sociedade: “De repente, ricos, pobres, famosos, todos estão fechados em casa e a passar pelo mesmo”.

Com quatro lojas de vestuário distribuídas por Ovar e Espinho, Sandra suspendeu o negócio a 13 de março, enviou 10 funcionárias para casa com a promessa de que cobriria a diferença entre os valores pagos pela Segurança Social e o salário real anterior à pandemia e começou por se ocupar com os preparativos do lançamento da sua primeira loja online.

Na passada terça-feira, antes de ser decretado o estado de calamidade pública em Ovar, teve, contudo, um pressentimento: “Achei que a coisa ia piorar e meti os miúdos no carro para um passeio final, uma espécie de despedida do nosso pequeno mundo. Fomos à praia, passámos pelo Parque do Buçaquinho, que já estava fechado a sete chaves, e, depois de uma volta a tudo, enfiámo-nos em casa e nunca mais saímos”.

Sem a empregada doméstica que antes a ajudava algumas horas por semana, Sandra fez uma limpeza geral à casa e preparou o jardim para que as crianças pudessem brincar no exterior em dias de sol. Entretanto, lançou-se ainda em “arrumações drásticas que andavam a ser adiadas há anos” e foi redescobrindo novas emoções como “ver que já há pó outra vez no cantinho de um móvel e ficar toda entusiasmada por ter que o limpar”.

O pior é lidar com o stress dos miúdos, que se sentem “atrofiaditos”. É certo que o pequeno Gustavo “está nas suas sete quintas” porque detestava a escola e a quarentena “é como se lhe tivessem materializado o seu desejo mais profundo”, mas brincar com a família ou entreter-se com atividades não chega. Vendo o mínimo de televisão, porque a mãe acha que “os ecrãs embrutecem o cérebro das crianças”, e com a energia de “um furacão, ao fim de certo tempo farta-se de estar fechado e irrita-se”.

O Simão, com os seus 10 anos e reconhecidos “dotes de oratória”, interrompe os trabalhos de casa recomendados pela plataforma virtual da sua escola para pesar os prós e contras do isolamento: “O lado mau é que nos sentimos muito aprisionados, muito em cima uns dos outros, e acabamos por nos chatear bastante. O lado bom é que podemos estar sossegados em casa, deixamos de andar na rua e não temos tanto medo de apanhar a doença”.

Se inicialmente o rapaz também pensava que o surto de covid-19 não era tão grave quanto se anunciava, agora, pelas conversas que mantém com os colegas através de aplicações telefónicas e redes sociais, nota que a atitude geral registou uma mudança. “Alguns estão super preocupados e uma colega minha está muito assustada porque é asmática, mas tento acalmá-la porque isto ainda deve durar até fim de abril e estarmos fechados em casa é mais seguro”, explica.

Enquanto Sandra e Simão vão contando a sua vida, Nuno Pereira permanece no escritório que tem em casa, onde antes já trabalhava duas vezes por semana como consultor internacional em projetos de implementação de retalho. Quando lhe passam a palavra, diz que, a não ser pelas deslocações pelo país e pelo Reino Unido, onde “as pessoas ainda não estão a ligar nenhuma à covid-19”, a sua rotina laboral se mantém quase igual.

“Mas isto porque a Sandra está em casa e fica com os miúdos, para eu continuar a trabalhar!”, reconhece. “Tenho outros colegas em teletrabalho, mas, como as mulheres são enfermeiras, eles é que estão a tomar conta dos filhos e a produtividade desceu-lhe uns 50%!”, revela.

Trabalhando das 09:00 às 18:00, Nuno só se junta à esposa e aos filhos ao almoço e no final da jornada laboral, e Sandra até agradece que assim seja, para se evitar o desgaste que um longo período de confinamento pode incutir num casamento.

Por estes dias, assumiram assim que, além das obrigações profissionais de cada um, ela supervisiona os miúdos e ele fica responsável pelas visitas ao exterior, limitadas a duas deslocações por semana para compras.

“De cada vez que vou ao supermercado é mais estranho”, confessa Nuno. Em Espinho, antes do cerco sanitário a Ovar, chegou a encontrar um cliente que parecia saído de um filme: “Estava vestido com um fato impermeável de pesca, botas de pesca, luvas, máscara, carapuço, óculos, sem pele nenhuma em contacto com o ar e só a comprar produtos de limpeza”.

Agora, já sob a quarentena geográfica, em Ovar “há filas na rua para se poder entrar no supermercado, lá dentro nunca se encontra o famoso do papel higiénico, a oferta de carne é muito pouca e iogurtes e leite também começam a desaparecer – ou então só se encontram nas marcas mais caras”.

Manifestamente “contra o açambarcamento”, Nuno diz que é preciso “respeitar os medos de cada um”, mas não consegue evitar a sensação de que tudo isto é “um exagero”.

Considera que, para conter a pandemia, “o mais importante é a higiene e a distância entre as pessoas” e, à exceção da lavagem frequente das mãos e do cuidado em evitar tocar o rosto, ainda se aventura pelo território vareiro sem luvas nem máscara, dispensando também a mudança de roupa ao entrar em casa.

“Pelo menos por enquanto, prefiro correr 1% de risco de contrair o vírus do que tornar-me semiparanoico”, conclui.

Quase pela mesma altura, Sandra está a fazer uma publicação na internet sobre memórias de um dia de calor, quando os quatro membros da família, apreciando o raro tempo de que então usufruíam juntos, mais facilmente se suportavam uns aos outros. Ainda consegue rir de si própria: “Armaram-se aos cucos e andaram a piscinar feitos burgueses em pleno mês de janeiro? Bem-feito! Agora ficam todos fechados em casa a curtir um cerco sanitário até nova ordem. Nadem no bidé”.

Texto: Alexandra Couto / Lusa via Notícias ao Minuto

Foto: Sandra Marques

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