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“Sou burro de livros mas capaz de aprender tudo de olho.” E Tony fez um império

Aos 66 anos, Tony Amaral já viveu muitas vidas. Foi um miúdo pobre em Ovar, teve um supermercado em New Jersey, e aos 32 anos fundou a comunidade portuguesa de Palm Coast, na Florida. Fazia 60 mil dólares por fim de semana a comprar e vender terrenos, perdeu milhões no subprime mas nunca deixou de andar para a frente. Nem de ajudar os outros.

“Às vezes conto às pessoas que para fazer a 4.ª classe o meu pai teve de dar uma galinha à professora! Eu sou burro de livros, mas de olhos aprendo tudo: vejo fazer e daqui a bocado faço igual.” A capacidade de aprender depressa, o gosto pelo trabalho e a vontade de construir algo seu mais do que compensaram a falta de formação. Aos 66 anos, António Amaral – Tony, como lhe chamam todos, entoando mais à portuguesa ou mais à americana conforme avançamos pelo restaurante português onde me convidou para almoçar com ele – é um homem orgulhoso do que construiu e reconhece que o dinheiro que ganhou nos negócios de construção e imobiliário lhe permite ter acesso a uma vida bem diferente da que tinha em Ovar, em miúdo. “Éramos quatro irmãos, numa família de lavradores, e tive mesmo aquela coisa de comer só meia sardinha; a primeira casa de banho que tivemos foi o meu pai que a fez em 1961. E a vida de emigrante não é fácil, mas hoje olho para trás e sinto-me orgulhoso, porque tive impacto nesta comunidade. Hoje somos respeitados aqui, somos conhecidos, temos o clube de que fui fundador…”

Quando chegou a Palm Coast, onde vive há mais de 30 anos com a mulher, os dois filhos e os cinco netos, Tony já levava na bagagem 18 de vida em Nova Jérsia, para onde o pai emigrara aos 55 anos – “Havia uma lotaria para vir para os Estados Unidos e ele inscreveu-se, mas só foi chamado em 1961; decidiu vir para abrir a porta aos filhos e acabou por vir a família toda, mas ele nunca teve nada, toda a vida passou dificuldades!” António começou por ajudar o pai na mercearia, conheceu Maria (de Viseu) em Nova Jérsia, casou-se aos 18 anos e já era pai quando um susto – um assalto à loja – o empurrou dali para fora. E aos 32 anos Tony decidiu fazer as malas e recomeçar tudo na Florida.

Ainda se lembra de quanto lhe custou. “Em Jérsia era como se estivesse em Portugal, mas aqui nem havia com quem falar português – o que foi bom, porque melhorou o meu inglês… mas ao fim de dois anos, numa Páscoa, tive uma enorme saudade… Saudades de comer azeitonas e regueifa! Pensei: venho para uma terra que não tem nada… e deu-me uma tristeza!” António Amaral era então o primeiro português naquelas bandas – hoje a comunidade conta com cinco mil, entre as 85 mil pessoas a viver em Palm Coast – e os seus filhos estavam entre os “26 garotos” a estrear a secundária onde agora a neta “acaba de graduar” (que hoje tem mais de 500 alunos). Agora, ali mesmo a cinco minutos do escritório da Amaral, onde almoçamos, só se ouve falar português – até o polícia americano que almoça com um colega português arranha qualquer coisa. E para comer há bacalhau, azeitonas, sopa de nabiças, feijão com torresmos, couves, linguiça e ovo estrelado. O vinho que acompanha o almoço hoje nem é de jarro, é um Eugénio de Almeida tinto, e o café que vem no fim é Delta.

“Cheguei aqui a 20 de janeiro de 1983 e um ano depois estava a abrir a construtora e a fazer as primeiras obras.” Não é que soubesse como se fazia, mas aprendeu nos seis meses em que trabalhou de graça para um outro construtor da região. “Ele queria pagar-me, mas eu só queria aprender, por isso recusei e disse que ele logo havia de ajudar quando eu fizesse a primeira casa – e ajudou.”

Histórias de fortuna e de falência

Nesses primeiros anos, António fazia casas por medida; hoje tem um catálogo com uns 16 modelos de moradias que variam do grande ao muito muito grande. Mas foi com a venda de terrenos que começou a fazer fortuna. “Ainda estava em Jérsia quando comprámos aqui o primeiro terreno e ao fim de semana vínhamos cá vê-lo – nem ruas havia ainda e vir aqui custava menos de 50 dólares! Esse nunca o vendi nem lá construí coisa nenhuma. Nem hei de vender. Já comprei mil terrenos depois disso.”

Apesar de estar a dez minutos da costa a perder de vista de Flagler Beach, há 30 anos havia aqui pouco mais do que pântanos e crocodilos. Ainda hoje há muita terra por domar nesta parte norte da Florida, cuja população duplicou, para cerca de 90 mil habitantes, numa década. “Dizem que em 2022 duplica outra vez e isso não me admira nada, porque quando cheguei à Florida havia nove milhões de pessoas e hoje são mais de 20 milhões. É um estado que atrai muita gente, sobretudo por causa do clima.” É esse, a par da beleza natural da região e da calma que ali ainda existe, um dos maiores fatores de atração sobretudo para recém-reformados. Mas também já se vê chegar muita gente nova – e isso é notório especialmente nas moradias viradas ao lago, com lanchas e motos de água atracadas e jardins cheios de brinquedos. Uns vêm de férias, para casas alugadas à temporada. Outros compram o terreno, fazem a casa na qual planeiam viver um dia, mas começam já a aproveitar períodos de férias e fins de semana ou põem-na a render. E António Amaral é ou foi dono de grande parte daquelas terras – pelas suas empresas passaram mais de mil terrenos e perto de três mil casas.

Claro que há 34 anos, quando tudo começou, a realidade que encontrou era dolorosamente diferente. No entanto havia um lado bom no deserto que era então Palm Coast: não era preciso muito dinheiro para investir em propriedade. “Comprava-se um terreno por quatro ou cinco mil dólares”, conta António, que viu ali uma oportunidade e ganhou clientes a fazer depois preços mais baratos do que os que figuravam nas tabelas. Se as imobiliárias tradicionais vendiam a 12 mil, António vendia a 10.

O que começou como um part-time informal rapidamente revelou potencial de negócio. “Eu trazia uns grupos de 15 portugueses lá do norte (dos EUA) de cada vez, para conhecerem isto, pagava-lhes a viagem, a estada e a comida durante o fim de semana e, como não pressionava ninguém a comprar, vinham só passear, as pessoas acabavam por se interessar e avançar. Alguns compravam quatro ou cinco terrenos para investir.” Encontrava potenciais interessados em restaurantes e bares de Nova Jérsia e organizava duas viagens por mês, nas quais gastava uns cinco mil dólares, mas também tinha publicidade na RTP Internacional, no jornal Luso-Americano, onde havia contacto com a comunidade portuguesa que ainda não conhecia Palm Coast. Também ajudava quem precisava de financiamento: “Dizia, dê-me 500 dólares e o resto paga em dez anos sem juros.”

“Passei a full time na época do Bush pai e nessa altura vinham casais de todos os Estados Unidos – eu comecei do nada e já estava a fazer muito dinheiro, uns 50 ou 60 mil dólares por fim de semana! Sabe o que é ganhar esta quantidade de dinheiro num fim de semana?” Se Tony Amaral enriqueceu – “eu era o real estater mais antigo, tinha a imobiliária, a construtora… todos vinham ter comigo” – também ajudou muitos à sua volta a fazerem bons negócios. “Quando isto explodiu, ali a partir de 1995 e até 2005, os terrenos valorizaram-se de cinco mil para 80 mil dólares, e aí até alguns que antes tinham comprado e estavam um bocado chateados comigo perceberam que era bom negócio.” Nesses anos, ganhava-se o que se queria, os preços eram uma loucura tal que havia quem recebesse ofertas de 180 mil dólares e dois dias depois vendesse por 199 mil.

Para António Amaral, havia ainda a construção. “Hoje vejo os miúdos sem saber muito bem o que querem fazer da vida e acho que isso também é porque têm muita coisa que lhes é oferecida. Mesmo os meus filhos, que nunca me deram problemas mas não têm esta garra… Eu fazia aqui 200 casas por ano, do princípio ao fim, eram quatro obras a começar por semana e tinha sempre 80 a 100 casas diariamente debaixo de construção.”

Como todos sabemos demasiado bem, a bolha acabou por rebentar e os investidores que tinham entrado mais tarde no negócio foram apanhados pela crise do subprime que varreu os Estados Unidos. Imunes aos avisos de Tony para que tivessem calma e ponderação nos investimentos, vários rapazes que trabalhavam na Amaral perderam tudo. “Muitos foram ao buraco, coitados… os que começaram naquela altura, com dinheiro emprestado… veio a crise e rebentou tudo. Uns senhores que eu conhecia tinham 40 milhões no banco; ficaram sem nada. Suicidaram-se… foi muito triste. Mas também conheço um senhor que tem 70 anos e já foi milionário e perdeu tudo duas vezes e agora está a começar outra vez e diz que ainda se vai levantar. E há de ser milionário outra vez – é isto que este país tem.”

António também perdeu milhões nessa altura – “tinha comprado uns terrenos por 80 mil dólares cada em 2005 que desvalorizaram para dez mil; e quando veio a inflação eu tinha mais de 60 casas para vender e só vendi 20, depois parei porque o preço não compensava e tenho-as alugadas até agora” -, mas tinha a segurança de só investir o que era seu, não tinha dívidas. “O meu pai sempre me disse: nunca mastigues mais do que podes comer e eu, em todos os anos nesta atividade, só pedi 15 mil dólares ao banco.” Essa diferença permitiu-lhe até lançar-se na construção de um centro comercial com 38 lojas em plena crise do subprime, em 2007. “A malta dizia que eu estava maluco, mas eu fiz aquilo barato nessa altura e hoje está 99% alugado.”

Um homem simples

Perder e ganhar são contingências do jogo dos negócios, saber quando apostar é prerrogativa de alguns, mas muito poucos que tenham feito uma viagem semelhante à de Tony Amaral conservam tanto gosto pelas coisas simples da vida. Como escrevi no início, António é hoje um homem orgulhoso daquilo que construiu, que tem gosto nos prazeres que o dinheiro pode comprar – sobretudo vir três ou quatro vezes por ano a Portugal, passear por cá de norte a sul, fazer almoçaradas na terra ou juntar os amigos para uma mariscada no Ramiro, em Lisboa. Sorri até aos olhos quando conta que tinha 80 pessoas à sua espera em Cucujães para festejar os anos com ele. “Até o Quim Barreiros lá estava – ele é muito nosso amigo.”

Gosta da casa que tem hoje em Ovar capaz de albergar toda a família, talvez até mais do que daquela para onde foge nos fins de semana de bom tempo e disponibilidade de agenda em South Beach, Miami. Gosta do peixe fresco – “não do que se come ali em Palm Coast, que só se consegue comer depois de congelado, se não é mole” – e das lulas da região onde nasceu, do bom vinho e das tardes passadas à mesa, entre amigos. Gosta de ver qualquer negócio cheio a correr bem e garante que não tem medo da concorrência. E gosta de ajudar – é evidente, apesar de temperar a generosidade com modéstia suficiente para não o deixar contar essa parte (outros contam por ele, como se vê aqui ao lado).

A política não é assunto em que queira alongar-se, mas se quanto à atualidade americana não destoa do pensamento pró-Trump da maioria da comunidade de Palm Coast, aqui em Portugal há muito que o desgosta. Como as notícias de corrupção que vão do Estado à banca e às empresas, ou “o roubo” que são as contas de eletricidade ou as portagens. “Veja lá, numa casa que está quase sempre fechada, pago uns 200 euros de luz por mês. E há dois anos, num verão a passear por Portugal, gastei 1400 euros em portagens!” Não é pelo dinheiro, mas vê aqui sinais de que o país está a tomar o rumo do pior que há na América do Sul, e isso entristece-o. Sobretudo porque continua a sentir-se bem português, apesar de não ser previsível que venha a trocar os Estados Unidos por Portugal.

É ali em Palm Coast que estão agora as suas raízes, incluindo a família, e há tanta diversidade nos Estados Unidos que Tony não desprezará outra lição que aprendeu com o pai. “Ele passou dificuldades durante toda a vida, nunca viveu realmente – e ainda me deixou dinheiro quando morreu.” Ainda que tenha um futuro confortável assegurado para os filhos, a história de António será diferente: “Acho que temos de viver, aproveitar e ver o máximo possível.”

E no fim do dia, com as suas lojas, restaurantes, supermercados, padarias e as festas que o clube português vai organizando, animadas por estrelas portuguesas, churrascadas e com o seu rancho folclórico a dar ainda mais cor aos dias de sol, hoje Palm Coast quase parece um cantinho de Portugal.

Devolver à comunidade: de Pedrógão às bolsas para estudantes

Ainda não tinha passado uma semana sobre o incêndio de Pedrógão Grande e já a 6,5 mil quilómetros António Amaral dava gás a um movimento para angariar dinheiro para ajudar as vítimas, com uma contribuição na ordem dos milhares de dólares. “O Tony é assim, está sempre disposto a dar.” A opinião é partilhada por vozes que vão do clube português de Palm Coast, em cuja construção o empresário foi fundamental – com fundos e com trabalho em partes iguais -, ao gabinete do cônsul honorário de Portugal na Florida, Caesar DePaço. Todos têm alguma coisa positiva a dizer sobre Tony.

Talvez não seja razão de espanto. Se alguma coisa mudou na generosidade de António Amaral desde os tempos de criança foi ter aumentado com o passar do tempo e a dimensão da fortuna que juntou com o seu trabalho. Não se deixa deslumbrar com elogios: “Eu nasci pobre… Quando olho para trás… a vida como era…”

Seja como for, a vontade de ajudar quem mais precisa não esmoreceu nada – e fá-lo com empréstimos e doações, mas também com emprego, conselhos ou juntando os braços aos dos demais, seja para assar o porco numa festa do clube seja para acabar um telhado que está por fazer. E continua a fazer a diferença na comunidade que ele próprio ajudou a fundar também através da Fundação António Amaral, que em 11 anos de existência concedeu bolsas de estudo no valor de 237 mil euros a 157 estudantes descendentes de portugueses.

Foi este Tony de trato simples e generoso também com o tempo que está disposto a dar aos outros que encontrei em Palm Coast, cinco horas depois de sair de Miami, rumando a norte, deixando para trás pontos de interesse turístico como Orlando, Daytona ou o Kennedy Space Center. O horizonte a ficar mais rural, mais arborizado e menos tocado por mão humana conforme me aproximava do destino, a quase 500 quilómetros de distância de Miami, para onde tinha voado.

A primeira impressão que se tem de Palm Coast é quase como se tivéssemos entrado num cenário de filme. As ruas traçadas a régua e esquadro com uma moldura de palmeiras, as construções em tons claros, em frente às portas, os jardins a brilhar de verde mesmo no dia chuvoso e de calor tropical que colava a roupa ao corpo mal se saía do ar condicionado, os estacionamentos escondidos atrás dos prédios com uma altura máxima de dois pisos. Por ali, absolutamente tudo brilha de novo, tudo parece a estrear.

O carro alugado para a minha viagem havia de ficar até de noite ali à porta do escritório da Amaral, onde Tony me levaria depois de almoçarmos, para conhecer a mulher e a filha. Antes disso, o meu entrevistado passaria um bom par de horas ao volante a mostrar-me o melhor que havia para ver por ali pelas redondezas, a surpreender-me com a extensão da praia de Flagler logo a seguir a uma curva insuspeita numa estrada entre árvores fartas e antigas, a contar os pormenores da sua vida, a revelar cada detalhe das casas por ele idealizadas e construídas ali em Palm Coast.

E quando o tempo se fez curto para a entrevista que eu marcara para o final dessa tarde, foi ainda ele que me levou ao clube português – onde me esperava a sua amiga e força motriz da organização, Maria Elizabeth Frazão – e depois de volta ao carro em que nos tínhamos conhecido há escassas horas.

Despedimo-nos com a promessa de voltar a encontrar a família aqui em Portugal – o verão é mês de redenção de saudades para qualquer emigrante e Tony viria com a família, como sempre faz. Mas antes disso estava a preparar-se ali um momento deveras importante: o hastear da bandeira portuguesa no clube, para celebrar o 10 de Junho. “Vai ser uma grande festa!”, previu Tony Amaral – e não estava errado, pelo que pude ver nos murais de Facebook dos que ali conheci.

Em Palm Coast. Esta reportagem foi feita no âmbito de uma parceria DN-FLAD.

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