Opinião

Sobre a “cerca sanitária” – Pelo não

Num grupo de cidadãos de Ovar, apareceu ontem uma sondagem: votar pela continuação ou pelo fim da cerca sanitária que, desde há 15 dias, mantém o nosso concelho fechado ao mundo. Votei pelo fim da cerca. Os resultados apareceram-me logo a seguir: 76% a favor da continuidade; 24% a pedir o fim. Fiquei em choque. O medo é, de facto, um adubo fértil, capaz de conduzir ao aparecimento dos mais incríveis fenómenos.
Quando tudo isto começou, percebi o objectivo, o sacrifício, o esforço pedido à nossa população: mais do que para nos proteger a nós, e sabendo-se que existia aqui transmissão comunitária, esta era uma provação que nos impunham para proteger as populações vizinhas. Até porque aqui, de qualquer modo, o mal já estava feito. Por isso, rumámos às nossas casas, fechámos as fábricas, as lojas, os serviços, pusémos de parte os passeios e as corridas (num dos primeiros dias, o Nuno ligou aos serviços camarários a perguntar se podia correr, recomendaram-lhe que não o fizesse; ele obedeceu), desertámos das nossas vidas e rotinas e, de um modo geral, fomos ordeiros. Cumprimos.
Criaram-se os inevitáveis grupos de partilha – informações sobre o vírus, como manter os miúdos entretidos, como nos mantermos entretidos, os minimercados onde comprar os frescos, que comércio podia estar aberto, quem tinha de estar fechado, ajuda com burocracias, os vídeos da malta a cantar à varanda na EN109, os vídeos das estradas desertas às sete da tarde no centro de Ovar, tudo e mais alguma coisa, e o sentido de comunidade nos píncaros.

Depois veio o revés disto tudo. Alguém apontou o dedo: havia pessoas a furar a cerca para o lado de Espinho, e era preciso reforçar a vigilância. Que pessoas? Onde, e de onde? Quando? Como? Eu não sei, nem vi. Estava em casa. Não vi, mas li as mensagens de ódio, de um lado e de outro. Do lado mais a norte, em Espinho, tochas acesas: que os números estavam a aumentar, que as pessoas de cá estavam a passar para lá, uns irresponsáveis, e levavam consigo o vírus, era um mata-e-esfola. Do lado mais a sul, na sede do concelho, as forquilhas: que era só areia nestas nossas cabeças, que esta gente era só à paulada e ao cacetete – li eu, ipsis verbis, e ainda deve estar tudo disponível para consulta no mesmo sítio -, e toda uma série de outros mimos solidários dos que até estavam no mesmo barco que nós. Para que esta teoria da culpa dos prevaricadores da fronteira fizesse algum sentido, era preciso que existisse aqui alguma lógica. Desde logo, era preciso que existissem *casos*. De vez em quando, havia quem arriscasse questionar a autarquia de Ovar: e o número de infectados por freguesias? Nesta altura ainda não se sabia. Depois,quando se souberam, foi o que alguns já supunham. Do lado norte do concelho, nas freguesias que confinam com o município de Espinho, o número de infectados era residual. Quando os primeiros dados foram divulgados, já depois desta polémica que vos descrevo, Esmoriz tinha identificados, salvo erro, 3 casos, Cortegaça 1, Maceda nenhum. Enquanto isso, convém não esquecer que todas aquelas pessoas dos municípios fronteiriços que temiam – e temem ainda – os ovarenses, podiam livremente – e podem ainda – circular para toda a área metropolitana do Porto e frequentar concelhos que estão hoje tão ou mais infectados, tão ou mais assolados pelo fenómeno da transmissão comunitária que os nossos 150 kms quadrados de terra proscrita – e portanto, podem hoje, basicamente, ser contaminados em qualquer lado e sob qualquer circunstância. Porto, Maia, Gondomar, Valongo, Gaia, todos já com centenas ou milhares de casos, todos aqui a dois passos, todos eles territórios que em condições normais promovem um imenso fluxo de pessoas de e para os nossos vizinhos de Espinho, Feira e Estarreja – e o perigo somos nós? Se não raiasse o absurdo, chegaria a ser cómico.
Portanto, primeiro ponto: manter a cerca sanitária de Ovar como um gesto de sacrifício dos beneméritos ovarenses para com os vizinhos dos concelhos limítrofes? Quanto a isso, à data de hoje e com os números actuais da pandemia em toda a região norte, estamos conversados. Uma ideia obsoleta.

Sobra-nos a ideia de mantermos a cerca sanitária para nos protegermos a nós próprios, os que cá estamos. Já disse noutro lado, por isso vou abreviar a conversa e dizê-lo aqui também: a partir do momento em que foi decretado um Estado de Emergência nacional, a cerca sanitária tornou-se redundante. E quem insiste em querer mantê-la para “proteger a nossa saúde”, como vejo muitos conterrâneos fazer nas caixas de comentários por essas redes sociais fora, só pode ter vistas curtas (um disclaimer aqui: eu sei, às vezes abuso no tom, mas nunca fui de eufemismos e paninhos quentes, e não vou começar agora. O que penso é o que digo e depois, enfim, também cá estou para dar o peito às balas pelas consequências do que disser. Meias palavras e meias tintas nunca foi o meu território. Podem acusar-me de tudo – mau feitio, arrogância, o que quiserem – mas se há coisa que prezo nesta vida é a transparência no discurso e nas intenções). Porque, voltando ao tema, o que vai proteger a nossa saúde não é uma barreira de betão à frente da Bi-Silque ou uma cabine de ‘checkpoint’ na EN109 a controlar viaturas e a exigir documentos, na fronteira de Esmoriz/Paramos, ou uma patrulha de militares da GNR a cavalo, a bater os pinhais e os areais da praia. Não, minha gente, isso é o que nos vai COBRIR DE VERGONHA. Ou, pelo menos, isso é o que me cobre de vergonha a mim. Isso é o que nos diz: não confiamos em vós. Isso é o que nos diz: aparentemente, todo o país é capaz de cumprir o que estipula o Estado de Emergência, incluindo todos os outros concelhos onde existe hoje a famigerada transmissão comunitária – e vocês em Ovar não.
Recordam-se, certamente, do que aconteceu quando o Pingo Doce de Ovar fechou, na sequência de dois dos seus funcionários terem sido infectados? Afixou um aviso a recomendar que os clientes (oriundos das localidades onde se concentra a esmagadora maioria dos casos, designadamente Ovar, S. João de Ovar e Válega) passassem, então, a dirigir-se ao Pingo Doce de Esmoriz. É, portanto, este nível de protecção que a cerca sanitária, tal como está desenhada, oferece aos munícipes de Ovar, e que os munícipes aplaudem e aprovam maciçamente em votações da internet: um território cerceado geograficamente, de acordo com os limites municipais (em vez de ser delimitado, sensatamente, de acordo com a prevalência de casos, nas localidades onde os casos eram efectivamente conhecidos), e onde por força das circunstâncias e do confinamento, caso não haja um escrupuloso cumprimento das regras de isolamento social, acabarão todos por se contagiar uns aos outros.

Portanto, é isto que salva vidas e a saúde de todos e, para isso, temos de contar, sobretudo, connosco próprios: antes de mais, e podendo, ficar em casa. Respeitar escrupulosamente as regras definidas pelo Estado de Emergência nacional. Seguir, sem sombra de dúvida, as recomendações municipais. Portarmo-nos como adultos conscientes e responsáveis para, a seguir, podermos exigir sermos tratados como adultos conscientes e responsáveis. Já disse isto em vários momentos e locais, e vou dizê-lo aqui mais uma vez: quando um jornalista do Público lançou uma série de questões – perfeitamente legítimas – que, de alguma forma, punham em causa o comportamento do povo vareiro, toda a gente se insurgiu e condenou o jornalista. Mas hoje, quando perguntam aos ovarenses se a cerca sanitária deve terminar no dia 2 de abril, comforme inicialmente previsto, os vareiros não confiam nos vizinhos, nem nos conterrâneos, nem pelos vistos em si próprios – e pedem em massa que a cerca continue. Somos assim TÃO piores do que todos os outros que não conseguimos cumprir a mais básica, simples e necessária regra exigida hoje a todo o país, ao ponto de precisarmos de uma barreira de betão que nos obrigue a cumpri-la? Ao ponto de sermos nós próprios a pedi-la? O medo, dizia eu no início, é mesmo um adubo fértil. Como dizia o Nuno ainda ontem, não sei exactamente como é que chegámos a isto, mas estamos num ponto em que, se perguntassem a todos os vareiros se queriam um polícia à porta do seu prédio ou ao fundo da sua rua para impedir os moradores de sair, o mais certo era que a maioria dissesse que sim. Hoje é dia 1 de Abril, e estamos nisto. Parece mentira, mas não é. E logo neste mês, que é também o do 25.

-> O presidente da Câmara Municipal de Ovar disse por estes dias uma frase que ficou a pairar longamente na minha cabeça: “a verdade é libertadora”. É um facto. A verdade anda reprimida em mim e a sufocar-me há demasiados dias. E, sendo eu da arte da escrita, tinha mesmo de escrever a minha própria verdade, nem que, por ironia, assim acontecesse no dia das mentiras. Perdoai-me a diatribe; prometo que tão cedo não torno a maçar-vos com estes assuntos. Siga a cerca.

Sandra Marques (Cortegaça)

Foto: Sandro Oliveira

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