
O fenómeno “Johny Bigodes” não surgiu por acaso. Insere-se numa tradição portuguesa de humor popular que sempre usou personagens-tipo para satirizar a sociedade. Os “bigodes” evocam imediatamente figuras do imaginário nacional: o emigrante que voltou rico, o “gajo de Alfama” de Ricardo Araújo Pereira, o guarda da GNR dos anos 70, o tio autoritário das reuniões de família, ou o velho do café que opina e sabe sobre tudo mesmo (sobretudo) aquilo de que não sabe nada.
Esta associação cultural serve um propósito estratégico: ao escolher um nome que remete para o folclórico e o caricatural, o utilizador cria uma camada de ironia defensiva: Quando confrontado com o que escreve, pode sempre alegar que “é só uma piada”, que “ninguém leva aquilo a sério a não ser você que é um tipo chato” ou que “é apenas uma brincadeira”. Esta ambiguidade protege o troll de consequências, tornando difícil distinguir entre provocação inofensiva e manipulação deliberada.
1. A Mecânica da Despersonalização:
O “Johny Bigodes” funciona como pseudónimo colectivo, semelhante a fenómenos internacionais como o “John Doe” ou ao uso de máscaras como a do Guy Fawkes pelo Anonymous. A diferença crucial é que enquanto movimentos como o Anonymous reivindicavam (inicialmente e legitimamente) causas políticas específicas de elevada relevância social e política, o “Johny Bigodes” luso existe sobretudo para:
Semear caos e desinformação sem uma agenda clara para além de criticar de forma estéril e improdutiva.
Testar os limites de moderação das plataformas os quais, como se sabe, são extremamente frágeis
Amplificar artificialmente certas narrativas ideológicas ou políticas (frequentemente cheganas) ou posições extremistas no geral mas quase sempre ligadas às narrativas fascistas ou de extrema direita.
Criar a ilusão de consenso popular, pela multiplicação aparente de “Jonhy Bigodes” quando, de facto, podem ser poucos indivíduos por detrás destes perfis.
Esta despersonalização tem vantagens tácticas para quem usa este método de despersonalização: quando não há rosto, não há responsabilização. Quando há dezenas de “Johny Bigodes”, não há forma de identificar padrões de comportamento individuais.
2. Estratégias de Multiplicação e Evasão:
A proliferação de contas “Johny Bigodes” segue padrões observáveis:
Variações nominais p. ex. Johny Bigodes 1974, Johnny_Bigodes_PT ou João dos Bigodes muitas outras variações (no Instagram, X, facebook e Tiktok, e sobretudo neste último, há centenas de contas destas)
Táticas de sobrevivência:
Rotação rápida: quando uma conta é suspensa, surge outra horas depois
Perfis dormentes: existem contas criadas com antecedência que apenas se activam quando necessário e, sobretudo, quando uma conta activa é apaga ou denunciada.
Coordenação aparente: usar o mesmo nome dá a impressão de grupo organizado, mesmo que sejam pessoas sem ligação real entre si
Migração entre plataformas: quando são expulsos do Facebook, os operadores das “Jonhy Bigodes” migram para o Twitter/X, Telegram ou fóruns ainda menos moderados.
3. O Humor Como Escudo:
O aspecto “cómico” do nome não é acidental: trata-ss de um estratégia deliberada que funciona em várias dimensões:
Psicologicamente, baixa as defesas do interlocutor, administrador do grupo ou, até, do alvo. É mais difícil levar a sério ameaças ou discurso de ódio quando vêm de um brincalhão com o nome “Johny Bigodes”. A dissonância cognitiva entre o nome ridículo e o conteúdo agressivo confunde a resposta emocional.
Socialmente, cria cumplicidade. Quem reconhece a referência sente-se “por dentro” da piada, o que pode tornar grupos mais tolerantes a comportamentos que normalmente rejeitariam: “és um chato por levar a sério essa brincadeira”.
Juridicamente, complica processos. Advogados e plataformas têm dificuldade em argumentar que “Johny Bigodes” causa dano real quando o próprio nome sugere paródia.
4. Impacto no Ecossistema Digital Português
A normalização deste tipo de pseudónimos tem consequências:
a. Degradação do debate público: Quando personagens supostamente “caricatas” como estes “Jonhy Bigodes” dominam discussões e os debates online, o nível de argumentação baixa. Questões sérias são tratadas com troça, factos são substituídos por provocações gratuitas com vista a paralisar ou emudecer o adversário ou vítima.
b. Fadiga de moderação: As equipas de moderação dos grupos e contas visadas (voluntárias ou sub-financiadas) esgotam-se a perseguir variantes infinitas do mesmo padrão, enquanto problemas mais subtis passam despercebidos.
c. Normalização de extremismos: Quando os discurso radical vem disfarçado de humor, as pessoas habituam-se. O que começa como “piada” de “Johny Bigodes” pode gradualmente deslocar a janela do que é considerado aceitável.
d. Erosão de confiança: Os utilizadores reais das plataformas, a partir de um certo ponto, começam a questionar se qualquer perfil é genuíno. A suspeita generalizada envenena interacções, mesmo entre pessoas de boa-fé.
5. Paralelos Internacionais
Portugal não está sozinho. Fenómenos similares incluem:
– “Ivan Ivanovich” em fóruns russos
– “Pepe” na alt-right americana
– Contas “patrióticas” brasileiras com nomes como “Brasil Acima de Tudo ”
-*Bots turcos com variações de “Mehmet” + número
6. Contramedidas Possíveis (e Limitações)
Combater este fenómeno é complexo porque qualquer solução enfrenta dilemas:
Bloqueio de padrões nominais: Proibir nomes com “Johny Bigodes” resolve o sintoma mas não a causa. Os trolls simplesmente migram para “Zé Barba” ou “Manel Mostacho”.
Verificação de identidade: Exigir documentos reais eliminaria pseudónimos, mas destruiria o anonimato legítimo que protege dissidentes, whistleblowers e grupos vulneráveis e, aliás, não é possível nas redes sociais onde estes trolls se movimentam.
Moderação por IA: Os algoritmos podem detectar padrões de comportamento, mas lutam com ironia, contexto cultural e nuance precisamente as armas do “Johny Bigodes” mas se existem: simplesmente não estão a funcionar nas redes sociais onde estas criaturas proliferam.
Moderar e Bloquear: Na prática este é o método mais seguro: perante a tentativa de entrada ou participação em qualquer fórum cibernético de um “jonhy bigodes” a única atitude possível e racionalmente preventiva: é barrar a entrada e bloquear.
Educação digital: A longo prazo, a solução mais sustentável é ensinar literacia mediática: reconhecer tácticas de manipulação, verificar fontes, não amplificar provocações óbvias.
7. Conclusão: O Troll Como Sintoma
O “Johny Bigodes” não é o problema propriamente dito é o sintoma de dinâmicas mais profundas e muito mais graves:
É a expressão das consequências do anonimato percepcionado sem responsabilidade nas plataformas digitais
É o produto direto de modelos de negócio gananciosos que recompensam engagement, mesmo quando tóxico e criador de sofrimento mental.
Vazio cívico onde pessoas procuram pertença e significado através de provocação
Sobretudo, é uma dalha colectiva em estabelecer e impor normas saudáveis para espaços públicos digitais.
Enquanto estas condições persistirem, derrotar um “Johny Bigodes” apenas convoca o próximo. O nome mudará, mas a máscara permanece: porque serve demasiado bem os seus propósitos: proteger quem ataca, confundir quem defende, e transformar debate cívico e verdadeiro num exercício circense.
O verdadeiro desafio não é banir pseudónimos, mas construir culturas digitais onde o disfarce cómico não seja passaporte para impunidade, e onde o riso não sirva de cortina de fumo para veneno e agressão virtual.




