Cultura

A liberdade de Rui Paixão na peça “Hamster Clown”

A tentativa de libertação de um hamster encerrado numa gaiola foi o ponto de partida de “Hamster clown”, uma criação de Ricardo Neves-Neves e Rui Paixão, que sobe ao palco do Centro de Arte de Ovar, no dia 30 de julho.

Sem qualquer fala, o espectáculo criado por Ricardo Neves-Neves e Rui Paixão, que interpreta, acaba por se tornar numa viagem alucinante que integra dança, performance, mímica e teatro, nas várias tentativas de libertação por que passa a personagem.”Um espetáculo onde a fantasia é assumida como material de trabalho e a ficção é valorizada na arte”, disse Ricardo Neves-Neves, sublinhando que “Hamster clown” foi pensado desde logo para ser feito sem texto.Trabalhar sem texto era uma vontade do encenador, que já nos habituou a espetáculos em parceria com a música. E embora há algum tempo pretendesse fazer uma peça sem texto, “nunca tinha tido coragem para o fazer”.
No verão de 2020, “ganhou coragem” e, depois de conhecer o trabalho de Rui Paixão, que não conhecia pessoalmente, telefonou-lhe e convidou-o para trabalharem juntos.
Rui Paixão, o artista que em 2019 era a figura central de um espetáculo do Cirque du Soleil, em cena na China, aceitou o desafio e, ao fim de algum tempo, perceberam quais eram os gostos de cada um e as referências que tinham no teatro, na dança, performance ou no `clown`.
“Mas também fomos ver muita coisa de fotografia, de pintura, muito cinema, muita música, muitos vídeos do youtube de artistas maravilhosos que não conhecemos e que o Rui conhecia”, acrescentou Ricardo Neves-Neves.Foi assim que foram juntando material para o espetáculo que agora se estreia na sala principal do S. Luiz, ao qual não foi alheia uma ideia do encenador e realizador Jorge Silva Melo, partilhada nas redes sociais, sobre o facto de se fazerem espetáculos “só pela beleza”, frisou Ricardo Neves-Neves.

“Então, no início, fizemos muitas coisas só pela beleza, só porque gostávamos e só porque tínhamos prazer ou em ver, ou em ouvir, ou em falar delas. Ou, depois, no caso do Rui, em fazer na cena”, sublinhou.

Só depois perceberam que estavam a criar “conteúdos”, alguns dos quais “relacionados com sonhos e pesadelos recorrentes, e algumas lógicas do subconsciente”, disse à Lusa.

E, em cima disto, os criadores tinham também muita coisa relacionada com o `drag`, expressão que Ricardo Neves-Neves disse ter aprendido há pouco tempo que Shekespeare foi o primeiro a usar, e que significa “dress as a girl” (“vestido como uma rapariga”).

Daí que a personagem interpretada por Rui Paixão seja “uma hamster”, numa personagem em que nada do corpo de Rui Paixão seja revelado ao longo do espetáculo. Nem o cabelo, nem a cor da pele, que está pintada, nem a figura masculina.

Num cenário onde impera o verde e o modelo de seis estátuas renascentistas de nus, o confinamento e a solidão perpassam ao longo do espetáculo e das tentativas de libertação da personagem da peça.

“O que se realça mais em mim quando estou em palco é o sentido de transfiguração”, afirmou Rui Paixão a propósito da personagem que interpreta e que, ao longo do espetáculo, vai sofrendo vários níveis de desfiguração.

Ao corpo feminino de corte burguês, com que Rui Paixão inicia a interpretação, rapidamente se vão sucedendo figuras, tanto projetadas num círculo central que domina o fundo de palco, e que representa a gaiola de onde o hamster se tenta libertar, como, em palco — caso de um gato, um T-rex ou um polvo –, obstáculos à libertação ou sonhos e pesadelos recorrentes da personagem.

Para Rui Paixão, a “transfiguração” marca, assim, a viagem do corpo desta personagem que umas vezes parece real, outras um `cartoon` ou, outras ainda, uma marioneta.

A ideia dos universos paralelos está também muito presente no imaginário desta peça, disse Ricardo Neves-Neves: “A ideia de o ser humano ter evoluído a partir de um hamster e não de um macaco”, e de que “isto não fosse como pensamos e sabemos”, referiu, a propósito.

Este espetáculo “assumiu a fantasia como material de trabalho” e a ficção como algo “que não deve ser deitado fora, e que deve fazer parte da arte”, frisou.

“Hamster clown” assenta também na procura do sentido verdadeiro da palavra liberdade e, nessa procura, a personagem acaba por ter de passar por uma “`marosca` de labirintos e de tentativas de fuga”, até chegar ao fim para a fuga maior, referiu Rui Paixão.

Questionado sobre o que acontece à personagem, o ator disse entender que, “no final, morre”, sendo esta sorte entendida como um “voltar ao início”.

“A liberdade é uma luta constante; é uma resistência e uma resiliência”, justificou Rui Paixão.

A cenografia é de José Manuel Castanheira, a caracterização e adereços, de Cristóvão Neto, os figurinos, de Rafaela Mapril, o desenho de luz, de José Álvaro Correia, a sonoplastia, de Sérgio Delgado e, o design de vídeo, de Oskar&Gaspar.

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