Opinião

A particularidade do ADN português desde a Pré-História – Por Paulo Freitas do Amaral

Nas paisagens de xisto de Trás-os-Montes, nos vales férteis do Tejo ou nas escarpas da costa atlântica, escondem-se mais do que memórias arqueológicas: reside uma herança genética antiga, silenciosa e única. Muito antes de sermos Portugal, éramos já outra coisa — e não éramos Castela. A ciência contemporânea tem vindo a confirmar aquilo que o instinto histórico português sempre pressentiu: Portugal tem uma assinatura genómica própria, distinta não só da Europa, mas também da própria Espanha. Essa diferença vem de longe, muito antes da fundação da nacionalidade.

Um estudo publicado na revista Science em 2019, coordenado por Iñigo Olalde — The genomic history of the Iberian Peninsula over the past 8000 years —, analisou o ADN de 403 indivíduos ibéricos do Mesolítico até à Idade do Ferro. Concluiu que o território de Portugal preserva linhagens genéticas anteriores à expansão indo-europeia, como os haplogrupos I2a e G2a, associados a caçadores-recoletores e primeiros agricultores do Neolítico. Esta ancestralidade é menos diluída do que noutras zonas da Europa, onde a migração das estepes euro-asiáticas (Yamnaya) substituiu de forma mais brusca a população local.

Mas a verdadeira surpresa emerge da comparação entre Portugal e Espanha. De acordo com o estudo de Daniel Shriner, publicado em 2019 na Nature Communications (Patterns of genetic differentiation in the Iberian Peninsula), Portugal constitui um núcleo genético coeso, com fortes traços atlânticos, aparentado com populações como os irlandeses, galeses e bretões. Em contrapartida, a Espanha apresenta uma diversidade interna acentuada: bascos, catalães, andaluzes e castelhanos mostram perfis genéticos diferenciados e maior influência de migrações mediterrânicas e centro-europeias.

Esta homogeneidade portuguesa tem resistido ao tempo. Segundo Rui Martiniano, geneticista português da Universidade de Cambridge, autor de diversos estudos sobre ADN antigo ibérico, o Norte de Portugal revela uma das continuidades genéticas mais marcadas da Europa Ocidental desde o Neolítico até à Idade Média. Mesmo durante a Idade do Bronze, o impacto genético dos povos das estepes foi mais limitado em Portugal do que no centro da Península.

Mais a sul, onde as interações com o Mediterrâneo foram intensas, a investigação do Instituto Max Planck revelou algo inesperado: vestígios genéticos do Norte de África, anteriores à chegada dos muçulmanos em 711, foram identificados em restos humanos do Alentejo, datados de há mais de 4 mil anos — sugerindo contactos comerciais e culturais com o Magrebe desde o final do Neolítico.

Por fim, o trabalho pioneiro de Luísa Pereira, da Universidade do Porto, analisando as comunidades sefarditas portuguesas, demonstrou que os judeus de Trás-os-Montes e da Beira Interior preservam linhagens mitocondriais únicas, que sobreviveram aos séculos de perseguição e assimilação, especialmente após a expulsão decretada por D. Manuel I.

A genética, longe de ser uma ciência fria, é aqui uma arqueologia do invisível: uma linguagem do passado inscrita no sangue e nos ossos. E diz-nos o que a História hesita por vezes em declarar com veemência: Portugal tem uma identidade genética própria, que remonta aos primeiros habitantes da Europa Ocidental, distinta daquela que se formou nos outros povos da Península. Não se trata de superioridade — trata-se de diferença. Uma diferença profunda, contínua e irredutível ao mito da unidade peninsular.

Num tempo em que se esbate a memória e se homogeneíza a cultura, a ciência vem lembrar-nos que Portugal é exceção também no plano biológico. Está no genoma a confirmação do que a cultura sempre intuiu: somos uma civilização atlântica, antiga e singular — não apenas no mapa, mas também no corpo.

Referências científicas utilizadas:

  1. Olalde, I. et al. (2019). The genomic history of the Iberian Peninsula over the past 8000 yearsScience, 363(6432), 1230–1234. DOI: 10.1126/science.aav4040

  2. Bycroft, C. et al. (2019). Patterns of genetic differentiation and the footprints of historical migrations in the Iberian PeninsulaNature Communications, 10(1), 551. DOI: 10.1038/s41467-019-08322-0

  3. Pereira, L. et al. (2005). Evidence for a founder effect in mtDNA lineages of Portuguese JewsAnnals of Human Genetics, 69(6), 611–620.

  4. Valdiosera, C. et al. (2018). Four millennia of Iberian biomolecular prehistoryPNAS, 115(13), 3428–3433. DOI: 10.1073/pnas.1800851115

  5. Instituto Max Planck – Departamento de Genética Evolutiva (2021–2024), estudos arqueogenéticos em cooperação com universidades ibéricas.

Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor

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