Opinião

O Surf como Terapia – Rafael Amorim

Habituei-me a ter como certo a incerteza dos nossos dias e, como qualquer bom surfista aproveito o bom que a natureza e a estadia neste mundo me oferecem. Os acontecimentos dos últimos dias, que abalaram esta comunidade com o desaparecimento precoce de um dos seus embaixadores, fizeram recordar eventos que pensava esquecidos e que, como um exercício de catarse e porque estão intimamente ligados ao Surf, aqui vos trago.

No final do século passado, antes de terem instalado a Anémona da Janet Echelmane e requalificado a marginal de Matosinhos, esta zona estava em terra batida e, entre onde hoje se situa o edifício transparente e a rotunda, bem por cima da saída das águas residuais, existia um alto onde os carros paravam para os seus passageiros olharem o Atlântico, fumarem um cigarro, namorarem ou dar duas de letra.

Tinha estacionado o meu velhinho Suzuki Santana nesse local, para surfar em frente à baia, e quando regressava, entre pousar a minha 7.2 e despir o fato de neoprene, reparei que dentro do carro imediatamente ao lado do meu, estava sentada uma senhora de bastante idade, cabelo muito grisalho e que, sorrindo, acenava a sua mão esquerda.

Vim a descobrir que aquela velhinha simpática, que me acenava de dentro de um carro, tinha sido uma Rainha da Rádio na década de sessenta e, embora nunca me tenha esquecido daquele sorriso, não conseguia sacudir o seu olhar. Era perdido, vazio, vago, distante e parecia anunciar uma quase ausência de alma. Vim a saber mais tarde que este olhar representava um estádio de demência degenerativa que, infelizmente, viria a encontrar em pessoas que me eram chegadas.

“Os problemas de foro mental são, também, uma consequência do mundo moderno…”

Andy Irons um fenómeno do Surf Mundial que nos deixou precocemente.

“Estima-se que com o aumento da esperança média de vida surjam cada vez mais patologias relacionados com a deterioração global das nossas funções cognitivas…”

Os problemas de foro mental são, também, uma consequência do mundo moderno. Estima-se que com o aumento da esperança de vida surjam cada vez mais patologias relacionados com a deterioração global das nossas funções cognitivas como a memória, atenção, concentração, linguagem, pensamento e que induzem alterações no comportamento, na personalidade e na capacidade funcional.

Só que estas alterações podem surgir quando menos esperamos e atingir quem nunca estaríamos à espera que pudessem sofrer de uma qualquer demência ou quadro depressivo. Mais impactante se tornam quando envolvem pessoas que comungam connosco do prazer do Surf e do contacto com o mar.

O Surf e o mar enchem o nosso corpo e recheiam a nossa alma de vibrações positivas, pensamentos bons, sensações aconchegantes e momentos de carinho. É por isso que entramos dentro do oceano como se procurássemos um balsamo que, à semelhança de um antidepressivo, nos dá um suplemento de energia e recarrega as nossas baterias.

Foi no mar da praia de São Pedro de Maceda, dentro de uma suave ondulação, que me refugiei a chorar convulsivamente pela perda de uma alma boa, carinhosa, que me acompanhou de menino e cujo desaparecimento trágico e repentino obrigou-me a parar e a pensar no quão frágil a nossa mente é. Uma pessoa maravilhosa, com uma vida feliz, com uma família que a apoiava e dela cuidava, simplesmente, um dia, decidiu apagar a luz que a mantinha viva.

Tantas respostas ficaram por responder, tanta angústia por não estar lá mais tempo, ter dado mais atenção, mais carinho ou disponibilidade.

“O Surf e o mar enchem o nosso corpo e recheiam a nossa alma de vibrações positivas,…”

Foi também de uma forma inesperada que, poucos anos mais tarde, recebo um telefonema de um amigo de Surf que me diz, amanhã traz a tua prancha, vamos todos para a praia pois ele não aguentou mais e, esta madrugada, terminou tudo.

Fiquei trémulo de frio e petrificado. Novamente as mesmas questões, porque não estive mais presente, porque não lhe liguei mais vezes, porque não o fui buscar para surfar… A malta há já alguns meses que tinha percebido das alterações de humor, do súbito aumento de peso, a falta de vontade de ir surfar ou da irritabilidade fácil que o afastou dos mais próximos. Estava longe e terei, durante esse tempo, falado apenas uma ou duas vezes com ele por telefone tendo ficado com a impressão que ele, por alguma razão, estaria chateado ou aborrecido comigo. Só queria ter ido surfar mais uma vez com ele. As tantas isso teria feito a diferença. Não sei…

O ex Campeão Mundial Sunny Garcia tentou por fim à sua vida, embora sem sucesso, encontrando-se agora numa cadeira de rodas e a recuperar da forma possível.

“Cada vez mais jovens sentem que terminar uma licenciatura não é interessante pelos custos/benefícios que lhes trazem…”

Cada vez mais jovens sentem que terminar uma licenciatura não é interessante pelos custos/benefícios que lhe trazem, em que os empregos são cada vez mais exigentes, mal pagos e retiram tempo livre para prosseguir os seus sonhos ou até para conseguirem sair de casa dos seus pais. Os riscos e a pressão das redes sociais tornam uma vida “normal” numa “chatice” face aos momentos fugazes de “aparências virtuais” que transmitem. Não admira que as prioridades andem invertidas e que aumentem os casos de ansiedade e de doenças de foro mental.

O prazer que recebo do Surf é suficiente para apaziguar os meus momentos de ansiedade, stress ou fadiga. É uma injeção de energia positiva que me ajuda a ultrapassar maus momentos e por isso se torna tão difícil compreender que, para algumas pessoas, não seja suficiente. Não foi suficiente para esse meu amigo, não bastou para estancar a tragédia do Sunny Garcia, não apaziguou a alma conturbada do Andy Irons e não evitou, infelizmente, o desaparecimento do Pedro Lima.

*Rafael Amorim

Existem diversas entidades que podem ajudarem caso de sofrimento de foro psicológico:
•    SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) – 213 544 545
•    Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) – 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159
•    SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) – 239 484 020
•    Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) – 222 080 707
•    Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535

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