Opinião

Ovar em dia de chuva – Ricardo Alves Lopes

Ovar a compasso da chuva que cai. A água a deslizar, cambaleante entre as brumas dos passadiços que nascem até à Escola de Artes e Ofícios. O centro inundado de pessoas que se deslocam no abrigo dos seus carros, no fugidio passo acelerado, por debaixo dos seus guarda-chuvas, a esconderijo das goteiras que enxurram as águas como dilúvios de dias invernais. O frio já chega.

As lareiras, nos mundos ocultos de cada existência, já vão ficando acesas, da Cova do Frade até à ponta mais distante de Arada. Não há ricos nem pobres, há lareiras e aquecedores, salamandras e mantas mais grossas. A agricultura prossegue, nos lados do Sobral, nos caminhos de Cimo de Vila, nos tratores que cruzam Cabanões. O Furadouro respira o aroma do mar a furar pela Avenida, Esmoriz, Cortegaça e Maceda exalam esse mesmo odor de mar, de maresia forte embebida na ondulação da chuva.

Os carros embaciados, as estradas molhadas, os passeios escorregadios, as escadarias do tribunal como autênticas montanhas do Evarest. Tudo a acontecer e o Neptuno a descansar na sua poltrona de intempéries. O Santa Camarão, agora mais disfarçado, também espreita por entre os combatentes aquela queda de água que leva caminho de São Miguel para o centro. O cinema, tão antigo, tão cansado, tão em desuso, fica a pensar se aguentará mais este Inverno com todas as suas pedras. Ao lado, a antiga casa, agora no Parque Urbano, sorri. Terá nova vida, como teve a outra mais à frente, logo a seguir à BP, onde agora nasceu mais uma discoteca.

Lisboa tem o Tejo, o Porto tem o Douro, Coimbra tem o Mondego e Aveiro partilha connosco a Ria (o Cáster é nosso). Somos diferentes, todos somos diferentes, mas somos iguais em tantas coisas que não vemos. Nos invernos que chegam, nos Verões que foram, nos Outonos que nunca apareceram.

Os passeios pela Avenida da Régua desapareceram, as noitadas ao relento da Praça das Galinhas fugiram para o interior do café, os guarda-chuvas pingam no balde da entrada, os casacos despem-se a medo e as vitrinas embaciam-se. As pessoas falam mais sussurrantes, menos sumptuosas na ânsia de viver, mas o mundo acontece.

A Câmara abre todos os dias, as fábricas laboram no compasso das máquinas que aguardam os trabalhos vindos de fora, os computadores teclam e nas escolas o giz deslize pelas ardósias ou os marcadores pelos cavaletes. Os cadernos estão abertos e a atenção dispersa (não é todos os dias que temos dezasseis anos). As mulheres trocam o assento da porta de casa pelas Tardes da Júlia, os homens não desistem do dominó.
O café Ideal sente a falta de alguém, mas o bilhar está lá posto, o Bagunça não sussurra, o João Gomes não fecha as portas a ninguém que queira um petisco e o XS mostra a evolução dos tempos. Temos uma nova gelataria, um outro café/bar a mudar de gerência, uma praça sempre em movimento, um Progresso de há muitos anos em roupagem nova e contemporânea, a Casinha Júlio Dinis e o Oxalá a marcarem ponto, o Passo do Horto a nunca deixar ninguém indiferente, o João da Vareirinha a ser sempre o João da Vareirinha, as casas de Pão de Ló de Ovar, agora movidas a contemplação da sua Confraria, o Paciência com as bicicletas, o Ramada com o ferro, a Flex com os colchões, o Malaquias com o retalho, tudo a mover-se. E a chuva a cair.

Ricardo Alves Lopes (Ral)
http://tempestadideias.wordpress.com
[email protected]

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