CulturaPrimeira Vista

“Nunca pensei que poderia, um dia, ter o meu trabalho tão reconhecido”

Quase sem dar por isso, Jorge Bacelar captou a alma de uma gente, de um modo de vida em vias de extinção. Quando pegou na máquina fotográfica pela primeira vez, pensou em registar estes momentos, esta luz especial que tem terra e água, esta amizade que sente. Uma leitura um pouco mais atenta dos pormenores das fotografias que não se cansam de ser premiadas, permite verificar que este é um registo social e histórico que vai perdurar.

Além das pessoas, é a luz que define a sua fotografia?
Sim, também. Sabendo metê-la na máquina está feito quase metade do trabalho. É preciso ter paciência para a encontrar e tirar partido desta luz.

Como foi que começou a fotografar estas pessoas?
Eles, de início, deixaram-se fotografar para me verem feliz. Era acima de tudo porque tamos uma grande amizade. Bem, o facto de eu poder ver por dentro como é esta vida rural como ela é e a vida deles também ajudou. Foi um conjunto de factores que levou a este resultado

… e a cumplicidade que se vê? Conquista-se?
E o afecto e o respeito acima de tudo. O carinho que sinto por eles também. A fotografia complementa a nosa ruralidade.

A sua fotografia é de proximidade?
Eu tento obter um cenário de proximidade porque normalmente estou sózinho com eles. além de tudo, não há factores de dispersão e isso também se observa na foto.

Concorda que há uma marca social que fica nas suas fotos?
As pessoas respeitam também porque vêem que isto é trabalhado com carinho, amor e afecto. As cabrinhas e os vitelinhos que por aqui andam. As pessoas hoje nem pensam que para se ir comprar carne ou leite ao supermercado alguém tem de criar os animais.

E os prémios? Dá-lhes valor?
Já fui campeão mundial de fotografia pela Selecção Nacional, o que também me alegrou muito. Cada prémio é diferente do outro. Já tenho muitas medalhas. Esta última também é dos mais importates e dá-me muita visibilidade.

Algum dia pensou que iria perpetuar um modo de vida?
Pensei em registar esta luz e estes agricultores pelo carinho que tenho por eles. Nunca pensei que chegasse a ser tão reconhecido pelo mundo fora. Isso nunca.

Nem eles sonharam o que lhes está a acontecer.
Eles nunca pensaram estar presentes nos 500 anos da Santa Casa Misericórdia de Lisboa, por exemplo. É uma homenagem que lhes presto, é uma alegria para mim e eles também ficam muito felizes.

Como é que eles reagem?
Ás vezes sabem pelas notícias e telefonam-me logo a dar os parabéns. Outros nunca foram fotografados e sentem-se bem, revêem-se nelas e agradecem a forma como os fotografei e como divulgo e à nossa ruralidade.

É uma homenagem que lhe presta?
Fui convidado para pertencer ao júri de um concurso sobre alimentação saudável e sustentabilidade porque o futuro desta actividade preocupa-me. É tudo produção massificada e estes agricultores são esquecidos, mas esta agricultura familiar dá emprego a muita gente. Se eles abandonarem o mundo rural, o desemprego aumenta de certeza. Quem vai ao supermercado nem reflecte no que estas pessoas passam para produzir muitos dos nossos alimentos.

O que reserva o futuro para a exposição “Ruralidades”?
Vou fazer uma exposição no Museu Machado de Castro, em Coimbra,  em abril talvez, se a pandemia permitir. Já era para ter sido no ano passado.

Vai fazer parte da comissão de honra da Guarda Capital da Cultura.
Sim, é mais um reconhecimento. Sinto que há grandes fotógrafos que nunca foram reconhecidos e eu estou a ter essa sorte.

Sente que também está a divulgar esta gente tão bonita?
Sim, porque a essência da nossa terra é esta gente. A alma de tudo são as pessoas e muitas vezes olhamos para as paisagens e recursos naturais e ambientais maravilhosos e devemos acrescentar estas pessoas que fazem parte de tudo.

Mas estes têm particularidades que os torna únicos?
Sim, estes agricultores também eram moliceiros. O Abílio, que está na foto que ganhou o prémio, é moliceiro e todos o conhecem de andar a vogar nas águas da Ria e depois voltar para a terra. Esquecemo-nos um pouco de que os agricultores iam apanhar moliço apara adubar os terrenos e fertilizá-los para as culturas. O Abílio tem mais e 80 anos e já não vai à Ria, mas a homenagem fica.

Aquele olhar…
Fiz uma sequência muito bonita com ele em que se vê o afecto entre o agricultor e o animal.

Nesta fase de pandemia seriam possíveis estas fotografias?
Não. nesta fase, nem ando com máquina nem faço fotografis. Não dá.

Nesta fase, omo mata o “bichinho” da fotografia?
A fotografia também o respeito pelas pessoas e em nome deste respeito obriga-nos a este distanciamento. Melhor dias virão porue acho mágica esta relação que tenho com eles. É magia. Foi uma amizade que se conquista ao longo do tempo.

Quando voltar, vai continuar neste registo?
Sim, vai ser sempre pela nossa ruralidade. Tenho muitos convites para fazer este trabalho em outras zonas do país. Claro que é na Murtosa e Estarreja que estão os meus amigos e sei que posso ir ter com eles sempre que quiser.

Ser amigo dos agricultores e conhecido dos animais foi decisivo para o resultado final?
Sim, e o facto de ser veterinário e conhecedor do comportamento animal também ajudou a prever um pouco de como eles iriam comportar-se para os registar. Depois, a amizade que os agricultores dedicam aos seus animais fez o resto acaba por ser sentir na fotografia.

É um registo histórico e social?
Sim, eu pretendo também mostrar os frutos da época e do campo, as vestes dos agricultores naqueles momentos, tento contextualizar tudo. Já me aconteceu fotografar cozinhas de fumo e passado algum tempo chegar lá e já não existirem. As pessoas têm de dar o valor a esta gente, pois caso contrário, terá os dias contados.

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