Opinião

O homem sonha, o plano nasce, o negócio avança – Por Sandra Marques

Não era minha intenção regressar ao mesmo assunto mas, face aos desenvolvimentos recentes, sinto que se justifica dedicar mais umas linhas ao tema do abate de pinheiros no perímetro das dunas de Ovar.

O assunto tem sido amplamente debatido, e tem merecido tantas e tão variadas intervenções – cívicas, políticas, ambientais, etc. -, que se corre o risco de, a dada altura, o interesse da população neste tema esmorecer pelo cansaço.

É fundamental que isso não suceda. O assunto é demasiado importante para ser desprezado. Diz respeito a um património que é público, que importa a todos, e que de todos deve merecer uma opinião esclarecida.

Pois bem, depois de um mês de suspensão nos abates decretado pelo governo, foi entretanto retomado o plano de corte de vários talhões ao longo da faixa costeira do concelho, desde Esmoriz até ao Torrão do Lameiro. O Instituto da Conservação da Natureza e Florestas – parte interessada no negócio dos pinheiros, porquanto receberá 40% da receita da venda da madeira – reafirmou a legalidade do documento e autorizou a continuação do plano.

Houve, no concelho de Ovar, quem celebrasse entusiasticamente a decisão.
Com efeito, para alguns, a confirmação da legalidade – sendo embora um requisito fundamental num documento como este – parece ser a única preocupação em matéria de “gestão florestal”. A defesa do património arbóreo, neste nosso tempo, em que palavrões como “emergência climática” são constantemente repetidos por razões imperiosas e incontornáveis, parece não ter lugar na agenda de certos munícipes.

Chego à conclusão de que não vivemos todos no mesmo tempo. Não lemos e ouvimos todos as mesmas notícias. Não refletimos todos do mesmo modo sobre os exemplos que nos chegam de outras partes do mundo, onde as alterações climáticas – fruto da ação imprudente do homem, que não parece querer equacionar as consequências dos seus atos a médio e longo prazo – já se fazem sentir com um impacto dramaticamente concreto. Não percecionamos da mesma forma o futuro, que já está aí ao virar da esquina.

Com a execução deste plano, convém lembrar que assistiremos, em apenas meia dúzia de anos (senão menos) ao desbaste de um quarto da área florestal do perímetro dunar no nosso concelho. Imagine-se se, à escala global, e no mesmo período de tempo, se fizesse aquilo que se vai fazer aqui, no nosso território. Imagine-se, portanto, o que diria a humanidade se daqui até 2026 se arrasasse um quarto das árvores do planeta ou, até mesmo, um quarto da Amazónia. Dito assim, parece um cenário razoável?

Parece-lhe a si, caro leitor, que estamos a dar tempo suficiente à nossa floresta para se renovar, de modo a que este assalto ao pulmão verde de Ovar não seja tão drástico e não tenha o profundíssimo impacto que inevitavelmente terá? A resposta parece-me óbvia: não estamos.

Não estamos a dar tempo à floresta de se regenerar. Não estamos a acautelar devidamente a sobrevivência das espécies de fauna e flora que se abrigam nestes pinhais, incluindo as aves migratórias que estão, precisamente neste período de primavera, a nidificar nos pinhais que em breve vão ser arrasados. Não estamos a valorizar suficientemente o papel que estes pinhais desempenham na fixação dos solos e na proteção da faixa costeira, essencial para deter o avanço crítico do mar sobre o nosso litoral.

Não estamos a salvaguardar o nosso precioso pulmão verde, que garante a qualidade do ar que respiramos e que é um dos mais valiosos ativos do concelho de Ovar – inclusivamente, no plano turístico, uma vez que o turismo sustentável e de natureza será uma das maiores tendências de lazer no futuro próximo e nós, nesta terra, ainda não fomos capazes de capitalizar toda essa mais-valia em nosso proveito.

Portanto, sejamos muito claros acerca deste assunto: a relevância do debate público sobre o polémico Plano de Gestão Florestal, com toda a celeuma que tem provocado, não se pode prender apenas com questões de mera legalidade. Acima de tudo, deveria haver uma preocupação de moralidade em quem toma este tipo de decisões sobre o património público. A moralidade de quem olha para estes pinhais – plantados há quase um século, com sacrifício e dedicação, pelos avós e bisavós da geração atual – e decide cortar, para vender, muitos milhares de árvores que NÃO SÃO pertença da Câmara Municipal de Ovar, NÃO SÃO das Juntas de Freguesia e, sobretudo,

NÃO SÃO daqueles que lá estão hoje, circunstancialmente, a exercer funções de poder. A floresta é pública; é do concelho de Ovar; é nossa; é de todos. A vontade popular tem-se feito ouvir de forma ruidosa nas últimas semanas e aqueles que foram eleitos para nos representar têm a obrigação política e moral de ouvir e agir em conformidade, acautelando não só os interesses financeiros das autarquias mas, acima de tudo, os superlativos interesses da comunidade e do território.

Concluo esta reflexão com a citação de uma voz crítica e sensata que valorizo acima de qualquer suspeita, na pessoa do meu marido, outro munícipe de Ovar: diz ele que, se os pinhais e a madeira não valessem bom dinheiro, como valem, seguramente não existiria esta vontade e preocupação prementes da autarquia em elaborar planos de gestão para as nossas florestas, para lá de todos os louváveis objetivos inscritos no documento (e que só o tempo dirá se serão efetivamente, ou escrupulosamente, cumpridos).

Não somos assim tão ingénuos. Se a floresta não valesse dinheiro, estaria muito provavelmente entregue aos desígnios da natureza e à sua sorte, como estão tantas outras coisas, lugares e patrimónios deste concelho. Porque, no final de contas, este pomposo Plano de Gestão Florestal, de legalidade impoluta, é apenas isso mesmo – um flagrante e chorudo negócio.

Sandra Marques

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