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O “último” pescador de enguias nasceu no Furadouro

A abundância com que ocorria aliada à sua qualidade alimentar fizeram da enguia uma imagem de marca da Ria de Aveiro. A pesca exercida sobre esta espécie espalhava-se da Torreira à Vagueira, através do chinchorro, com galrichos, numa área mais ampla, e à sertela (ou minhoqueiro). As capturas eram abundantes e fomentaram duas actividades económicas que chegaram a ser de relevo elevado para a região: o turismo gastronómico e a indústria conserveira.

Hoje, a laguna mudou e a enguia já não se vê como antes. José Eduardo Acabou, de 76 anos, é um dos últimos pescadores de enguia na Ria mas, curiosamente, nasceu na Praia do Furadouro.

Numa destas manhãs de Outono, esperámo-lo na Ribeira da Aldeia, em Pardilhó, Estarreja, outrora ponto de encontro de dezenas de pescadores de enguia. Lentamente, percorre o canal manobrando a bateira com mestria, aproxima-se e atraca. Traz o rosto do desânimo: “Apanhei uma enguia e das miúdas”, atira, quando lhe perguntamos o resultado da pescaria. “Não há enguias na Ria”, lamentando uma situação que contrasta grandemente com outros tempos. “Cheguei a apanhar muitos quilos delas, nos anos de 1980”, pouco depois de regressar de França para onde foi antes do 25 de abril de 1974, deixando a sua terra natal “a salto”, como acontecia muitas vezes naquele tempo. José Eduardo lembra-se bem desse tempo em que os galrichos estavam cheios. “Ia ao mercado da Murtosa e vendia tudo”. “Hoje, não há, nem se vê, acabou”, repete, como se o seu apelido fosse profético.

Naquele tempo em que se radicou em Pardilhó depois de casar, a enguia da Ria vendia-se muito e bem, destinando-se a uma variedade rica e substancial de menus culinários, hoje recordados por um festival gastronómico, realizado na Murtosa, que tem vindo a apurar a qualidade da oferta, ao longo dos anos. A promoção da qualidade e da originalidade na preparação do que, com aparente simplicidade, os incautos presumiam ser apenas uma simples caldeirada ou uma mera fritada em molho de escabeche, tem vindo a transformar a gastronomia da enguia numa dimensão sofisticada, baseada na tradição, num produto gourmet que atrai múltiplos e diversificados visitantes para a sua degustação.

José Eduardo Acabou diz, todavia, que a Ria já não consegue fornecer enguias em quantidade suficiente para eventos desse calibre. “Só se forem encomendadas de viveiros de Espanha ou da Turquia”, admite, mas “não é a mesma coisa, não têm o mesmo sabor, sabe?”

Acompanhando a percepção dos pescadores profissionais sobre a sua actividade nas últimas três décadas, em inquéritos a eles dirigidos, um estudo promovido pela CIRA verificou uma quebra média de captura diária, por embarcação, entre os anos 80, do século passado, e a actualidade, de cerca de 90%. Os pescadores referiram que naquele tempo se pescava 30 a 100 kg por noite e por embarcação e que pescavam seis dias por semana.

O gradual desaparecimento da enguia é directamente proporcional ao fim do chamado moliço da Ria. José Eduardo que o diga. “O leito da Ria agora é só lama e não há aquele moliço verdinho que havia, onde o peixe vinha alimentar-se e aqui procriava”. “Isso agora não há e a enguia já não vem e com a dragagem a decorrer ainda pior se torna”, sentencia.

Mas esta dragagem que decorre na Ria não tem como finalidade a preservação da espécie e o pescador natural do Furadouro, em Ovar, não tem grande dúvidas: “Se depois deste trabalho todo, não criar aquele moliço, como antigamente, não adianta nada”.

O cais da Ribeira da Aldeia chegou a estar cheio de pescadores de enguia, quando ela era um negócio lucrativo. “Hoje, sou só eu, mas só ando aqui para passar um bocado de tempo, porque se estivermos sempre em casa damos em malucos”.

“Um ex-libris a preservar”
Em 2014, a CIRA, através do Grupo de Acção Costeira da Região de Aveiro (GAC-RA), considerou de toda a premência promover um estudo sobre este recurso natural, intitulado “Enguias na Ria de Aveiro: um ex-libris a preservar: biologia, sanidade e pescas”, no intuito de se estabelecer conhecimento que proporcione a sua exploração sustentada, ou seja, uma pesca continuada no tempo que não contribua para a extinção da espécie na laguna.

A Ria de Aveiro tem uma tradição longa de produção de peixes, em geral, e de enguias, em particular, no salgado, através da chamada piscicultura extensiva, isto é, a produção de peixes em tanques, como os viveiros das minhas de sal, com uma intervenção humana mínima, e da piscicultura extensiva melhorada, nas marinhas convertidas para peixe (não as semi-intensivas dedicadas ao robalo e dourada).

Estas pisciculturas são abertas uma vez por ano para renovamento de água, entrando também os peixes, que aí ficam aprisionados durante cerca de um ano. Deve ser dado um impulso à produção de enguias nessas pisciculturas, onde, além das enguias que entram naturalmente, devem ser introduzidas enguias pigmentadas no início da enguia-amarela.

Na Ria de Aveiro devem definir-se zonas privilegiadas para o crescimento natural da enguia, como a metade sul do canal de Mira, da Vagueira ao Areão, e a parte norte do canal de S. Jacinto, acima da ponte da Varela, onde chegou a estar proibida a sua pesca em 2015. Estas áreas devem ser repovoadas com, pelo menos, metade da produção de enguia-amarela das pisciculturas. Com esta medida, pretende-se incrementar o stock de enguia nas regiões e melhorar as capturas dos pescadores profissionais licenciados para pescar especialmente nessas zonas.

José Eduardo Acabou concorda com todas as medidas, mas avisa: “Hoje, só se encontra alguma enguia nos canais mais pequenos, as chamadas nas valas. Já não se pesca no canal principal”. Embora não saiba se foram todas implementadas, a experiência diz-lhe que ainda não há resultados e que isso será pouco provável de acontecer no canal principal da Ria, onde as marés movimentam fluxos enormes de água, a grande velocidade, o que impede o crescimento do tal moliço e o estabelecimento de espécies.

Luís Ventura

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