CulturaPrimeira Vista

Os Reis em Ovar em 1910

Troupe Reis velhosNoite de Reis: – Cerca das dez horas da noite alguém bateu à porta, convidando minha mãe a ir ouvir os Reis, que cantavam ou deviam cantar, ali perto. Como era coisa que muito apreciava, minha mãe agradeceu o convite e foi agasalhar-se, prevenindo-se contra o frio daquela noite de Inverno, enquanto me ia dizendo:– Queres vir também comigo, ou queres ir para a cama?

Eu, que tinha cerca de dez anos, disse logo que também ia. Vestiu-me roupa quentinha, pôs-me uma capa com carapuço, e ala, que se faz tarde.
De facto, andava na rua muita gente, apesar do frio áspero de Janeiro. Ali, perto da Senhora da Graça, um grupo cantava no átrio do prédio grande do Sr. Valente (pai da D. Sofia Lagoncha), que era o dono da casa e nela tinha um grande negócio de mercearia e vinhos.

O grupo tinha vozes boas, claras e harmoniosas. Logo nos dispusemos a segui-lo.

Dali foram a casa do Sr. Peixoto, que nesse tempo ainda não tinha feito a obra da loja do outro lado da rua (em frente à casa de viver era campo). Eu, como era pequena, furando a barreira dos curiosos, pus-me ao lado dos cantores, observando os músicos, que afinavam os seus bandolins e violinos antes de começarem.

Junto do Sr. Rosas, sapateiro, que tocava muito bem, consolei-me de ouvir, do princípio até ao fim, todo o canto. Com tanto gosto e agrado o escutei, que aprendi uma pequena parte dele. E de tal modo que nunca a esqueci. A voz do solista (tenor) era clara, macia e forte. A melodia, belíssima e entoada com alma, penetrou de tal forma no meu coração que perguntei quem era o cantor. Era o Joaquim Correia Dias. A sua voz admirável enchia a casa e a rua, e entrava-nos dentro da alma ao dizer-nos com voz firme e aberta:

REIS Zo-La-RiSantos Reis, oh! que regalo                   
Ter uma coroa. Não é?
Vós andastes a cavalo
Mas nós andamos a pé!…

Ao que o coro respondia:

Tudo aqui canta
com alma e vigor
até que a garganta
conserve o calor…

Mas se ela arrefece
findou-se o cantar.
Remédio que aqueça
só vós podeis dar!…

No fim deste canto, é claro, vinham garrafas…
Conheci o Sr. Peixoto e a esposa, bem como três filhos e duas filhas. (Hoje já nenhum vive).
Tão entusiasmada fiquei naquela noite de Reis que não consegui pegar no sono, repetindo constantemente as passagens que fixei e que atrás deixei escritas.

Logo de manhã fui convidar umas sete amigas a quem ensinei o número, e à tardinha do dia seis já o fomos cantar a casa de minha Avó paterna e de várias pessoas amigas…
Enfim, entusiasmo de gente nova, que ia levar aos mais velhos a alegria do Menino nascido.

São assim os Reis em Ovar. Dia de festa santa, dia fraterno, esperado com ansiedade por muitos corações. Tempo em que os cristãos se abraçam, em comemoração do nascimento do Menino-Deus. Abrem-se as portas de par em par. E também as bolsas, que se alargam em generosidades. Produto este que geralmente é aplicado em favor dos desprotegidos.

Maria José Vinga (Artigo publicado no quinzenário ovarense João Semana a 1 de Janeiro de 1981)

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