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“Porque muitos mais Miguéis irão ser mortos nas ruas de Ovar”

Enquanto engenheiro de Vias de Comunicação e Transportes (um dos ramos de especialização da engenharia civil) confirmo que, para além da questão cultural do “prego a fundo” – representativa de um atraso em termos de desenvolvimento humano e social – há um enorme fosso na capacidade política de planeamento e projecto de uma rua. Sempre que me pedem para projectar uma estrada, pergunto de imediato “A que velocidade máxima querem que os carros circulem?”

Se me dizem 120 km/h, projecto de imediato uma auto-estrada, uma infraestrutura viária com 2 ou 3 vias em cada sentido (faixas, como se diz lá em casa) com 3.75m de largura cada (para estimular a aceleração e velocidade), separador central, berma interior e exterior, longas rectas, curvas com raio elevado e sobre-elevação adequada à dinâmica resultante de tais velocidades.

Se me dizem 50 km/h, pergunto logo “De quantos em quantos metros querem medidas de acalmia de tráfego?” A ver: passadeiras sobre-elevadas que fazem os condutores temer pela integridade física do seu carro, rotundas ou mini-rotundas por forma a abrandar os aceleras e praticamente anular as mortes dentro e fora dos carros em caso de sinistro rodoviário, pavimentos que causem vibração no interior do veículo (como cubos de granito, vulgo paralelos) e claro, nas intersecções projectar raios de curvatura pequenos entre 1 a 3 metros, para além de outras medidas já aplicadas há décadas nas ruas das localidades dos países com maior nível de desenvolvimento humano e de bem-estar.

O arruamento em Ovar onde foi recentemente morto um jovem de 18 anos por embate lateral de outro veículo a grande velocidade e também atropelada com gravidade uma jovem rapariga, tem demasiadas características de auto-estrada: é uma longa recta com 2 km de extensão, sem uma única medida de acalmia de tráfego que obrigue os automobilistas a reduzir a velocidade, é ladeada por elementos paisagísticos, bem colocados a meu ver, mas que escondem as zonas dedicadas a peões e ciclistas dando a sensação de que estamos numa via rápida onde só circulam automóveis. Juntam-se a estas características um pavimento betuminoso regular e uma reduzida visibilidade das passagens de peões e dos cruzamentos e estão criadas as condições para incutir no condutor (já de si distraído ou com pressa) diversos estímulos para acelerar bem como para não ter sequer consciência da real velocidade – muito acima do legal e do recomendado – a que circula.

O problema em Portugal? Demasiados políticos que quase em exclusivo se deslocam nos seus carros de grande cilindrada e que acham que as estradas “são para andar” (raramente os vemos a deslocarem-se a pé, de bicicleta ou de transportes públicos) aliado a engenheiros que, ou não se especializaram em projecto de vias de comunicação e mesmo assim concebem arruamentos urbanos, ou não têm saído dos seus gabinetes nos últimos 20 anos para assistirem a conferências sobre boas práticas de projecto para a construção de ruas seguras para todos os que nela circulam: peões, ciclistas e automobilistas.

A este caldo juntam-se ainda algumas entidades ligadas à prevenção e segurança rodoviária que gastam parte dos nossos impostos a fazer anúncios de televisão com humoristas a alertar os motociclistas que é obrigatório usar capacete, como se estes não o soubessem e fosse isso a grande causa de morte nas nossas estradas.

Nota final: em mais nenhuma construção humana se matam tantas pessoas como nas estradas, só se encontrando paralelo com as câmaras de gás dos campos de extermínio nazi.”

 

Paulo Guerra dos Santos
Especialista em Vias de Comunicação e Transportes.
Automobilista desde 1994, utilizador de bicicleta desde 2008, peão desde 1974.
Desenvolvedor do Projecto
Engº Civil / Mestre em Vias de Comunicação e Transportes.
Pós-graduação em Políticas Públicas.

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