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“A maior prisão é a da mente”: Reclusos e crianças de Ovar falam de Liberdade

Alunos do Agrupamento de Escolas de Ovar e reclusos do Estabelecimento Prisional de Aveiro assinam o livro “Liberdade é.”, lançado esta quarta-feira, na Escola Secundária José Macedo Fragateiro, onde se demonstra, entre outras perspetivas, que “a maior prisão é a da mente”.

Essa frase é um excerto da publicação de 160 páginas que a empresa Águas da Região de Aveiro (AdRA) apresentou esta quarta-feira ao público escolar na forma de mensagens e canções, numa parceria que inclui o Município de Ovar.

O livro resulta de um projeto social e pedagógico que a AdRA começou por desenvolver na escola da referida prisão e que depois alargou a crianças do 1.º Ciclo de estabelecimentos de ensino vareiros e a estudantes da Secundária Homem Cristo, em Aveiro.

Esse projeto editorial esteve a cargo do coordenador de Comunicação e Educação Ambiental da empresa, Nuno Vasconcelos Branco, que, em declarações à Lusa, conta que tudo começou numa aula de Pintura do estabelecimento prisional: “Os reclusos começaram a falar sobre o que era estar ali e um deles disse que ‘liberdade é poder abraçar uma árvore’. Isto deixou-nos a pensar e vimos logo o potencial de um projeto com eles sobre os 50 anos do 25 de Abril”.

Primeiro com uma tiragem restrita de apenas 300 exemplares e só em junho disponível no mercado livreiro, “Liberdade é.” veio assim a compor-se de três segmentos: os textos escritos por reclusos com idades de 20 até mais de 50 anos e ilustrados por crianças de nove turmas do 2.º ano de escolaridade; uma série de dados estatísticos e históricos sobre o setor das águas por altura do 25 de Abril, como o surto de cólera registado nos anos 70 no Porto e noutras cidades do país; e vários ensaios dos estudantes da Escola Secundária Homem Cristo sobre preocupações ambientais e outras ameaças sociais que se colocam à liberdade individual e coletiva.

“Liberdade não é só livrarmo-nos de regimes maléficos e autoritários; é também ter acesso às coisas, às sensações, a tudo de que o ser humano precisa para ser completo – e por isso é que este livro, com perspetivas tão diferentes umas das outras, é realmente inspirador”, afirma Nuno Vasconcelos Branco.

Com “edições mínimas aos textos”, essa publicação em capa dura pode não exibir a maior qualidade literária, mas “compensa largamente enquanto estudo sociológico” – até porque o projeto também envolveu os docentes da cadeia e finalistas do curso de Design e Artes da Universidade de Aveiro, que estão agora a preparar uma futura exposição sobre o mesmo trabalho.

Esta quarta-feira, o diretor do Agrupamento de Escolas de Ovar, Francisco Bernardo, agradeceu o empenho de alunos, docentes e pais para tornar possível este projeto.

Cláudio Pedrosa, adjunto do Estabelecimento Prisional de Aveiro, realça que da parceria entre os diversos participantes associados ao projeto resultou, “além de um cruzamento de ideias muito distintas sobre a Liberdade, também um diálogo intergeracional muito gratificante”.

O efeito dessa colaboração no moral e no comportamento dos reclusos é particularmente notado por quem com eles trabalha diariamente: “As mudanças notam-se na comunicação interpessoal, entre os próprios reclusos e [no diálogo desses] com professores, guardas prisionais, técnicos, profissionais de saúde, administrativos e visitantes do meio livre. De uma forma geral, o relacionamento torna-se mais descontraído, os reclusos mostram-se mais comunicativos e bem-humorados, e revelam-se, sobretudo, mais assertivos perante contrariedades, o que reduz os conflitos e tensões em meio prisional”.

Cláudio Pedrosa realça que “há também quem descubra aptidões e capacidades individuais que desconhecia em si” e acrescenta que alguns reclusos relatam “a satisfação de aproveitarem melhor o tempo em que estão privados de liberdade e o alívio de angústias e preocupações que os tornavam mais ansiosos e irritáveis”.

Esse responsável espera que o livro “Liberdade é.” possa agora contribuir para “transformar a imagem social dos cidadãos que estão transitoriamente privados de liberdade” e melhorar também as ideias-feitas sobre as prisões e os profissionais que aí trabalham – muitas delas “baseadas em séries televisivas e filmes que têm muito pouca relação com a realidade”.

“A abertura da prisão à comunidade envolvente pode contribuir para que essa perceba que tem um papel indispensável não só no processo de acompanhamento das penas e medidas privativas de liberdade, mas também no acolhimento e reintegração destas pessoas no momento em que regressam à vida em liberdade”, explica.

Tal ajuda é decisiva, aliás, para concretizar o espírito democrático idealizado pela Revolução dos Cravos, porque “quem recorda as prisões de há 50 anos sabe que foi feito um longo caminho, para uma realidade melhor, mas sabe também que esse trajeto nunca está terminado – a transformação é um trabalho diário que precisa da colaboração da comunidade envolvente”.

A expectativa do adjunto da direção prisional é que a população livre perceba que uma passagem pela cadeia não é incompatível com enriquecimento e valorização a vários níveis: “Um dos reclusos referiu que foi preciso vir para cá para se ‘libertar’ das drogas. Uma estudante confessou sentir-se ‘sem liberdade’ para escolher um curso superior se isso significar mudar-se para outra cidade e não ter capacidade económica para um alojamento. Quem está na prisão pensa e valoriza mais a liberdade do que quem vive fora dela, mas também há liberdades que não sofrem restrições ou que até são ampliadas, como a de pensamento e a de criação artística”.

Como exemplo disso, Cláudio Pedrosa conta que alguns reclusos começaram a escrever poesia e “ganharam prémios literários em concursos nacionais, quando, em liberdade, nunca tinham escrito um verso”. Outros protagonizaram peças de teatro, “descobriram que eram capazes de representar em palco, perante um auditório repleto, e querem prosseguir esse caminho quando saírem da prisão”.

*com Alexandra Couto (Lusa)

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