Opinião

Cáster que levas as mágoas – Por Fernando Alves

Há oito dias, dormi em Ovar, num hotel antigo, junto ao rio. Os rios não repousam no leito como as aves nos galhos, não têm noite nem manhã, são um incessante tropel de água. Presumo que não dormem, salvo no estio. Caso durmam, devem ter um sono semelhante ao das fragatas que voam dias seguidos desligando um hemisfério quando se entregam à madorna. Talvez os rios durmam só na margem de lá.
O meu embalo para o sono, na noite de Ovar, não foi, pois, o mar do Furadouro, mas o tumulto do Cáster, desejoso de abraçar a ria, no cais do Puchadouro.

Na margem de lá do rio, a Flor de Liz prometia pão-de-ló, mas só por telefone. O Cáster devia ter cartas de chuva para entregar a outras águas, depois de receber as da ribeira da Graça, mais adiante, no local onde Júlio Dinis ia escutar as conversas das raparigas em que se inspirou para as figuras de Margarida e Clara, as filhas de José das Dornas, ou para registar a passagem do médico João José da Silveira, montado no seu burrico, guarda-sol aberto, mote certeiro para o João Semana de As Pupilas do Senhor Reitor, tão bem retratado por Roque Gameiro numa aguarela de 1904.

Adormeci como uma fragata, embalado pelo rumor das águas. Mas o outro hemisfério sondava os abismos e acordei, sobressaltado, madrugada alta. E, então, sim, o estrondo do rio era o de uma tempestade que irrompesse do chão. O Cáster parecia correr no quarto, de tal modo que me lembrei do que dizia Bugrinha, num poema de Manoel de Barros: “Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.”

Na verdade, já não consegui regressar ao sono. Ainda o sol não rompera, fui procurar o local perto do açude onde Daniel, de uma vez que fugiu da aula de Latim, tentou explicar a Margarida o que era um cataclismo. E logo ela, indo pelos seus dedos na página, quis saber o que era uma metempsicose. E lhe cantou a cantiga da Cabreira, embora Daniel preferisse a da Morena. Entretanto soaram numa igreja ali perto as badaladas das seis. E voltei ao hotel. Para trás, deixei Clara, irmã de Margarida, pedindo ao “rio das águas claras” que não conte os seus tormentos. Cáster que levas as mágoas…

Mas o rio, lá fora, é um tropel de água. Os rios não estão confinados. Correm sem descanso, galgam concelhos e fronteiras, quando não são, eles, fronteira, intransponíveis apenas se o caudal ou a fúria das águas não permitirem a travessia. Na verdade, como alguém avisou, ninguém diz violentas as margens que os comprimem.

Fernando Alves
Fernando Alves in Diário de Notícias
Jornalista da TSF

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