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É falso que alunos do Outeiral foram “obrigados a vestir trajes islâmicos e a declamar poemas pró-Palestina”

A Associação de Pais da Escola do Outeiral repudia, em comunicado, “uma publicação falsa que usa a imagem da escola de forma manipulada e com conteúdo odioso”.

Tudo começou no sábado, quando o vice-presidente da bancada parlamentar do Chega, Rui Paulo Sousa, denunciou nas redes sociais, incluindo no X, que, “numa suposta festa de finalistas do 4.º ano, na Amadora, alunos são obrigados a vestir trajes islâmicos e declamam poemas pró-Palestina!” (https://archive.ph/40ZK4), um ‘tweet’ que já foi lido mais de 42 mil vezes.

O também candidato autárquico do Chega à Câmara da Amadora fez uma publicação idêntica no Facebook, já com quase 170 mil visualizações (https://archive.ph/npeHK), igualmente acompanhada pelo vídeo de 16 segundos que mostra algumas dezenas de alunos sentados no que parece ser um recinto desportivo, enquanto ouvem outro aluno explicar o objetivo da festa que marca “um ano cheio de aprendizagens, desafios superados e muitos momentos felizes”.

Nas imagens, um dos grupos de alunos enverga panos pretos e brancos na cabeça, aparentemente alusivos aos ‘keffiyeh’, os tradicionais lenços árabes associados à luta nacionalista palestiniana, mas não se observa qualquer declamação de poemas, nem as imagens revelam tratar-se de uma escola na Amadora.

Antes de ser reutilizado pelo deputado do Chega, o vídeo foi também partilhado por várias contas ligadas à extrema-direita nacionalista, como a ‘Resistência Lusitana’, com a mesma narrativa de que os alunos foram “obrigados a vestir trajes islâmicos e a declamar poemas pró-Palestina”, mas sem referência à Amadora, numa publicação que já ultrapassa as 213 mil visualizações (https://archive.ph/7CNjU).

O mesmo vídeo foi entretanto partilhado pelo líder do Chega, André Ventura, que também questiona a iniciativa, mas deixa cair a referência à Amadora.

“Isto é em Portugal. Os miúdos são obrigados a envergar trajes islâmicos e a recitar poemas pró-palestinianos. Em que se tornaram as nossas escolas? Querem ensinar-lhes liberdade ou a violência e a submissão?”, lê-se num ‘tweet’ já com mais de 80 mil visualizações (https://archive.ph/aeiOx).

Na verdade, tratou-se de um gesto solidário de alunos do 3.º ano da escola EB do Outeiral, em Arada.

Nos comentários das publicações foi possível encontrar vários alertas para o facto de o vídeo não corresponder ao afirmado, nomeadamente porque foi gravado numa escola de Ovar, e de não se ver qualquer símbolo religioso ou leituras de poemas pró-Palestina.

De facto, a publicação mais antiga com aquele vídeo identificada pela Lusa Verifica foi feita na sexta-feira, no X, por um utilizador que afirma ter assistido à iniciativa. “Vim à festa de finalistas da minha prima que vai passar do 4.º ano para o 5.º e deparei-me com isto”, escreveu João Neves, que nesta rede social se identificava como “videógrafo de direita” (https://archive.ph/qVy1v). Esse ‘tweet’ contava já com mais de 250 mil visualizações antes de ser eliminado na tarde de domingo, 29 de junho.

Questionado por algumas contas nacionalistas na secção de comentários, o autor do vídeo explicou que as imagens foram gravadas “na escola primária do Outeiral, em Arada, Ovar” (https://archive.ph/00kgM) onde, alegadamente, “as professoras puseram os miúdos a ler poemas sobre a Palestina” (https://archive.ph/ND69g).

O Lusa Verifica geolocalizou as imagens através do Google Maps e confirma que foram gravadas no recinto da Escola Básica de Outeiral, na freguesia de Arada, concelho de Ovar, a cerca de 250 quilómetros da Amadora: https://maps.app.goo.gl/n6KCK1m9vnw5418N7.

Uma pesquisa no Facebook permitiu identificar a página da Associação de Pais da Escola do Outeiral (APEO), onde uma publicação de sábado (https://archive.ph/hixqn) revela que o grupo de alunos no vídeo representou o 3.º ano e a sua atuação (https://archive.ph/osGHB) incluiu a apresentação da canção “#SAYHI – Um Mundo Melhor”, música inserida numa campanha europeia pela Paz e a Amizade (https://archive.ph/Ob2lM).

Nessas imagens, entretanto também eliminadas, não foi possível identificar qualquer traje religioso ou declamação de poemas pró-Palestina, mas os alunos envergavam panos com uma quadrícula preta e branca, numa aparente alusão ao povo palestiniano, embora o padrão não corresponda exatamente aos utilizados nos ‘keffiyeh’, que são lenços axadrezados árabes sem qualquer associação religiosa direta (https://www.britannica.com/topic/kaffiyeh e https://archive.ph/gKUFV).

Já nesta segunda-feira, a Lusa Verifica teve acesso a um terceiro vídeo da apresentação do 3.º ano onde se pode constatar que os alunos expressaram solidariedade para com as crianças palestinianas. “Foi um ano cheio de aprendizagens, brincadeiras, amizades e momentos felizes. Mas enquanto nós rimos e estamos juntos com as nossas famílias, há crianças como nós que não têm essa sorte. Na Palestina há muitos meninos e meninas que não podem ir à escola, que vivem com medo e que perdem as suas casas e até as suas famílias por causa da guerra. E eles também têm sonhos, também querem brincar, estudar e viver em paz como nós.”

Nesta parte da apresentação os alunos leram apenas um poema sem qualquer conotação política ou religiosa. “Nesta festa quero deixar uma mensagem: não nos podemos esquecer deles. Mesmo que estejamos longe, podemos sentir no coração o que é justo. Podemos ser solidários, falar sobre isso e desejar um mundo melhor. A paz começa com pequenos gestos e hoje o nosso gesto é lembrar, sentir e desejar paz para todas as crianças do mundo. Vamos ouvir a turma do terceiro ano a declamar um poema intitulado “A Paz”, de Sidónio Muralha” (https://archive.ph/MQxHi), ouve-se e vê-se nestas imagens disponibilizadas pela APEO.

Contactado pela Lusa Verifica, o autor do vídeo original diz-se surpreendido com o alcance da publicação e descontente com o “aproveitamento político” que acabou por ter. “Vi-os vestidos daquela forma e filmei para partilhar com alguns amigos, porque não concordo com aquilo, mas não contava que fosse viral”, explica João Neves.
O ex-aluno daquela escola admite que as crianças “leram uns textos de solidariedade com a Palestina, mas textos de criança, nada político” e considera que “foi um erro” ter divulgado o vídeo. Quanto às publicações do deputado, João Neves defende que “o deputado devia admitir que está a mentir e que tentou usar o vídeo em seu benefício”.
A associação de pais (APEO) mostra a mesma surpresa e descontentamento. “É uma deturpação dos factos que lamentamos e repudiamos, mas não podemos fazer muito mais. Os miúdos fizeram uma encenação sobre a paz que os pais sabiam que ia acontecer e na qual colaboraram – eu, por exemplo, cedi aqueles tecidos axadrezados para os miúdos usarem naquela espécie de teatro por um mundo mais justo”, afirma Márcio Pereira.
O presidente da APEO, pai de um dos alunos intervenientes, explica que a associação decidiu apagar o vídeo e as fotos da atuação do 3.º ano “para evitar mais problemas”. Entretanto, ao final da manhã de hoje, a APEO publicou um alerta no Facebook sobre a “utilização da imagem da escola de forma manipulada e com conteúdo odioso”, uma nota de repúdio que reafirma “o compromisso com a paz e o respeito” (https://archive.is/3rNJh).

Já a coordenadora da Escola do Outeiral diz-se “chocada com a forma completamente descontextualizada” com que as imagens foram usadas. “Estamos todos indignados porque foi uma festa bonita da qual até saímos emocionados e agora vemos parte da festa estragada com este incentivo ao ódio nas redes sociais”, lamenta a professora Margarida Fernandes.

A docente explica que a iniciativa não teve qualquer objetivo político-partidário: “O tema genérico era a proteção do planeta Terra e uma das turmas trabalhou o tema da paz, porque não basta ensinar português e matemática, também trabalhamos o que se passa no mundo, sempre sem partidarismos. E ninguém obrigou ninguém, até porque foi tudo feito em parceria com a associação de pais”.

*com Agência Lusa

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