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Mercado Municipal reabre após dois meses de fome para uns e inovação para outros

O Mercado Municipal de Ovar reabriu hoje ao público apenas com produtos alimentares e num ambiente geral de satisfação, após dois meses de inactividade que foram “de fome” para alguns comerciantes e de “inovação no negócio” para outros

Às sete da manhã já havia fila à entrada desse recinto do distrito de Aveiro, com dezenas de pessoas a contornarem pelo lado da sombra o edifício do arquitecto Januário Godinho (1910-1990). Num único portão, controlavam-se os acessos para que no interior não circulassem mais do que 150 pessoas em simultâneo, todas com máscara e com indicação para cumprirem dois metros de distanciamento social.

Na secção da fruta desenhava-se depois nova fila para que os comerciantes atendessem um cliente de cada vez e, aguardando ao sol, Maria do Céu Marinheiro não estava satisfeita: “Já estou farta de filas nos supermercados e, por muito que esteja desejosa de coisas da terra, não tenho pachorra para estar aqui muito tempo, ainda para mais com este calor. Se soubesse que era para estar em filas e que não posso ser eu a escolher a fruta, não tinha vindo”.

Mário Coelho percebe-lhe a crítica porque, sendo comerciante de hortícolas há 15 anos e tendo banca em Ovar há oito, até ele prefere que sejam os clientes a escolher as peças de fruta por si próprios, para que possam levar para casa aquelas de que realmente mais gostam.

De boca tapada por tecido azul-marinho com pintinhas vermelhas, vai cortando de luvas as melancias, embala metades e quartos em celofane, e diz que as vendas desta manhã são fracas por se processarem a um ritmo “muito mais lento” do que na antiga normalidade, mas, ainda assim, faz um balanço positivo dos últimos dois meses de trabalho sob as restrições impostas pela covid-19

“Em Ovar não fiz negócio nenhum, mas andei a vender porta-a-porta em Santa Maria da Feira e, desde que ando nesta vida, nunca tive um mês tão bom como este último. Mesmo! Além disso, também comecei a fazer cabazes e vendi-os muito bem, portanto isso vai ser para continuar”, garante, reconhecendo a uma nora o mérito da ideia.

Defendendo que a pandemia “é para continuar no próximo ano”, Mário Coelho já se habitou a cuidados de higienização mais apertados, mas apela para “menos exagero” nas medidas sanitárias exigidas à retoma do comércio. “Não percebo porque é que os produtores agrícolas não puderam vir para o sítio do costume e ficaram tão isolados no fundo do mercado, quando até estão ao ar livre. E também deviam voltar os [vendedores] ciganos com roupa e calçado, para atraírem mais clientes”, argumenta.

Enquanto lhe compra morangos carnudos, Aurora Pinho concorda: “Essa gente está sem sustento há meses e o mesmo se passa com os cafés. Sorte a minha que já tive um e o deixei em boa hora, senão agora era uma desgraça”, confessa, reconhecendo que aquilo que lhe tem feito mais falta durante o isolamento é exactamente “uma bica fora de casa” – prazer maior “dos pobres, que não têm dinheiro para mais”.

Já as ânsias de Rodrigo Mota, eram menos modestas e foi para as saciar que ele gastou 40 euros no peixe-mor da nação. Desejoso de bacalhau, consolou-se na banca de Napoleão Oliveira, que a meio da manhã já tinha vendido “uns 100 quilos” a clientes que sentiram a falta dos seus opíparos lombos de 10 centímetros de altura. “Não há comparação entre este bacalhau e o que se compra no supermercado, que é caríssimo e depois ainda sabe a musgo!”, explica Rodrigo.

Rosa e Arlete Soares, pequeninas e fofas no seu cabelo alvo e máscaras caseiras, preferiram carapaus, mas reclamavam da autarquia ao comprá-los. “Não tem jeito nenhum eles só avisarem das coisas na Internet, porque a minha pensão não dá para Internet! Quando isto fechou, eu não sabia, vim cá de manhã cedo e dei com o nariz na porta; agora que isto abriu, também só informaram quem lhes interessou e foi a minha irmã que me avisou ao passar aqui”, diz Rosa.

Arlete Soares tenta acalmar-lhe o tom irritado, concentrando-se no lado positivo da reabertura do mercado: “Estou toda contente por podermos vir cá. Tem sido muito tempo fechada em casa. Até isto já nos fazia falta!”.

Selene Duarte está a “torrar ao sol” na ponta mais longínqua do mercado, a gerir uma banca de 10 metros de comprimento em que o teve mais saída esta manhã foram pés de couve para plantar, assim como alface, alho francês e “cebolo, que já não havia há muito tempo”.

Os dois meses em que se viu impedida de trabalhar deixaram-na amarga: “Foram para morrer de fome. Não tive rendimento nenhum e tudo o que era para vender aqui tive que mandar para o lixo”. É por isso que se mostra sensível ao impacto desta pausa forçada na vida dos vendedores ainda impedidos de regressar: “Os ciganos estão há dois meses sem trabalhar e, se a Câmara não arranjar forma de eles também virem para cá, essas famílias estão desgraçadas”.

Enquanto faz umas comprinhas à agricultora, Daniel Carlos mete conversa para realçar que as pessoas também precisam de roupa nova, até para retomarem um quotidiano pleno e “começarem a perder o medo”. Alto e robusto, exibia uma máscara cinza que escondia a sua expressão facial e ninguém lhe adivinhava a piada de remate: “Afinal, já nos basta a gente gastar tanto dinheiro no dentista e depois andar sempre de máscara, sem poder mostrar ao povo estes dentes todos arranjadinhos”.

Alexandra Couto / Lusa

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