Opinião

Pernas para que te quero – Mariana Palavra

YANGON, MYANMAR – Mariana Palavra contou à Visão a sua experiência como voluntária nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, que aqui reproduzimos com a devida vénia.

Comecei a planear ir aos Jogos logo aos seis anos quando os meus olhos estarrecidos viram Carlos Lopes ganhar a medalha de ouro na maratona em Los Angeles 1984 no televisor a preto a branco da casa da avó. Em 1992, achei que o meu irmão era a pessoa mais feliz do mundo (e meu herói) por ir a Barcelona para ver o canoísta português José Garcia (Chefe de Missão portuguesa no Rio 2016) alcançar aquele que foi o melhor resultado nacional da modalidade numas olimpíadas, batido apenas vinte anos depois e logo com prata.

Mais de três décadas depois daquele Agosto em casa da avó, cheguei finalmente aos Jogos Olímpicos. Vim ao Rio 2016 como voluntária, o melhor que se podia arranjar com esta idade. Vim cumprir o sonho da criança. E desligar-me temporariamente de Myanmar.

Esperei que a pele ficasse em jeito de galinha logo no início da Cerimónia de Abertura. Apesar do sorriso constante a desafiar a resistência dos maxilares, o meu momento à flor da pele só surgiu quando foi anunciada a entrada da equipa Síria no estádio olímpico e a passagem da equipa dos Refugiados na recta final do desfile das delegações. Nem o fogo-de-artifício, nem os cinco mil dançarinos, nem a Chama, nem todo este samba me fizeram vibrar. Talvez isto confirme a razão pela qual escolhi este trabalho que me levou há quase dois anos ao Myanmar, de que tanto me queria desligar. Um país com um conflito civil com mais de 60 anos, com problemas intercomunitários (forma politicamente correcta para referir a violência, instigada por grupos budistas extremistas, que opõe a maioria budista no nordeste do país a um grupo étnico muçulmano). Um conflito “intercomunitário” que forçou cerca de 140 mil muçulmanos a viver em campos farpados e cercados. Um país que está na posição 148 do índice de desenvolvimento humano, mas com suficientes recursos naturais para escalar a lugares cimeiros da tabela dos 188.

A equipa de Myanmar veio ao Rio 2016 com sete atletas. E desfilaram sem que eu pudesse ignorar, sem que eu pudesse olhar para o lado sem tirar uma foto, necessariamente desfocada pelos olhos baços e pelas circunstâncias próprias de uma cerimónia de abertura do maior evento do mundo. Os sete (seis chegaram por convite) vieram competir em cinco modalidades. O tiro, o tiro com arco e o judo talvez não surpreendam, dadas as características militares e a localização do país. Mais inesperada será a participação de dois atletas nos 5 mil metros masculinos e nos 800 metros femininos, respectivamente. Pertencem a uma reduzida equipa da Federação de Atletismo composta por apenas 32 atletas seniores e 23 juniores. Os dois atletas da natação completam a delegação (e as surpresas) olímpica(s). Com apenas 14 anos, um dos nadadores está na lista dos atletas mais novos a competir no Rio 2016. Os treinos foram nadados numa piscina construída em 1962 a precisar de manutenção que, muito provavelmente, não vai acontecer uma vez que a Federação de Natação de Myanmar afundou. Patrocinadores e voluntários asseguraram a preparação dos dois jovens nadadores.

Calçadão

As manhãs, antes de colocar o uniforme do Rio 2016, são passadas nas corridas no calçadão de Ipanema e Leblon. Momento para sonhar com as próximas corridas, planear o próximo texto do Nós Lá Fora, fazer contas à vida, lembrar as competições que ainda quero assistir, olhar para a Pedra da Gávea e lembrar que o Brito, amigo brasileiro dos tempos do Haiti, morreu ali há menos de dois meses quando tentava voar sem asas. Melhor forma para esquecer o Myanmar. Ou tentar.

Apesar da pista vermelha para peões e bicicletas, assinalada em cada sentido, insisto em não correr na direcção certa ou, quando já estou com o pensamento na próxima viagem, torço o pé na calçada portuguesa, ao lado da pista. Claramente, não estou habituada a tantas condições. A comparação com Yangon é inevitável.

O meu “calçadão” na maior cidade de Myanmar (desprovida de capital em 2006) é uma longa avenida que acompanha o Rio Yangon e é ladeada por tapumes publicitários que escondem vários portos de carga e de transporte de passageiros. É perpendicular à famosa Rua Pansodan, que concentra o maior número de edifícios coloniais de Yangon, marca dos 124 anos de colonização britânica.

Apesar de ser muito provavelmente a única estrada de toda a cidade que não é tropeçada por outras ruas ou vias, a pista pressupõe desvios constantes, uma espécie de jogo para evitar obstáculos. Ratazanas e camiões com deficiência de faróis aparecem de surpresa no calçadão. Mais complexa é a fuga aos cães vadios que estão contabilizados em cerca de 300,000 em toda a cidade.

No Rio, os cães passam em carrinhos de bebé ou em cestinhos de bicicleta à boleia do dono. As garotas de Ipanema passeiam-se mais ou menos despidas mesmo ao lado da pista.

Em Yangon, não são muitas as pessoas com as quais me cruzo na minha “pista” de corrida: adolescentes a quem os camionistas que aguardam a abertura dos portos compram sexo. Por vezes, corpos caídos no chão. Provavelmente por culpa do álcool de arroz, muito comum nas comunidades migratórias que vivem do outro lado do rio e utilizam um dos portos para as travessias diárias em busca frustrada de trabalho precário. Meninos e meninas, menores de idade, de uma sociedade muito conservadora (e perigosamente obcecada pelo Budismo) aqui namoram às escondidas. Sentam-se no chão, junto aos buracos de escoamento de água, há muito entupidos de lixo, onde os pais, se não forem camionistas, nunca os vão apanhar. Por vezes, alguns toxicodependentes ali encontram refúgio. A cena não é rara no segundo maior produtor de ópio do mundo e um dos líderes de tráfico na região.

Pode parecer um cenário negro, mas a minha pista de Yangon é mais segura que qualquer calçadão. Aqui (lá) não somos assaltados sob a ameaça de armas. Aqui (lá) ainda não temos que caminhar e olhar prudentes com quem nos cruzamos.

Estou cansada de correr. Está na altura de parar e voltar para casa. Hora de voltar para Myanmar.

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