
A história do terramoto de Lisboa de 1755 é amplamente conhecida: a cidade foi devastada pelo sismo, pelo incêndio e pelo maremoto. Menos conhecidas são, porém, as tragédias que se seguiram nos meses posteriores, quando Lisboa, ainda em ruínas, foi atingida por novas intempéries. Uma dessas calamidades foi a tempestade de dezembro de 1755, referida em correspondência diplomática e eclesiástica da época, nomeadamente nas cartas do núncio apostólico Filippo Acciaiuoli, que relatava a Roma o estado desolador da capital portuguesa.
Entre as vítimas dessa nova desgraça contam-se os doentes do Hospital Real de Todos-os-Santos, muitos dos quais haviam escapado ao colapso e ao incêndio do edifício no dia do terramoto. O hospital, situado no Rossio, fora fundado no reinado de D. João II e era então o principal centro de assistência pública da cidade, acolhendo centenas de enfermos, pobres e expostos. O sismo de 1 de novembro destruiu grande parte do edifício, e muitos doentes pereceram esmagados ou queimados. Contudo, vários foram retirados a tempo e instalados em tendas improvisadas, em conventos e palácios próximos, onde passaram o inverno em condições precárias, dependentes da caridade e expostos ao frio e à humidade.
Foi nesse cenário de improviso que, em dezembro, uma nova tempestade assolou Lisboa com ventos furiosos e chuvas incessantes. As águas transbordaram, invadindo as zonas baixas do Rossio e da Ribeira. As barracas e tendas onde os doentes se encontravam foram arrastadas, e muitos, debilitados e incapazes de se mover, morreram afogados nas águas lamacentas. Tinham sobrevivido ao terramoto e ao fogo, mas não resistiram ao dilúvio que veio depois.
Os registos paroquiais e hospitalares, quase todos destruídos, não permitem hoje identificar nomes ou números. Sabe-se apenas, pelas cartas do núncio e por alguns testemunhos coevos, que a cidade mergulhou novamente no caos. As chuvas agravaram a miséria, espalharam doenças e reforçaram o sentimento de punição divina que o terramoto já havia despertado.
A tragédia desses doentes simboliza uma segunda onda de sofrimento, menos visível, mas igualmente devastadora. Foram vítimas não só da força da natureza, mas da fragilidade humana e institucional de uma cidade desfeita. O seu fim trágico, depois de terem escapado às chamas e às pedras, resume a condição de Lisboa naquele inverno de 1755: uma cidade ferida, desfigurada e sem abrigo, onde até os sobreviventes eram condenados por um destino implacável.
A tempestade de dezembro foi, assim, o epílogo cruel do desastre. Os doentes do Hospital Real de Todos-os-Santos, que haviam resistido à destruição, morreram silenciosamente nas águas frias do Rossio, desaparecendo sem nome nem memória. São eles os símbolos esquecidos da vulnerabilidade humana perante a natureza e da persistência da tragédia muito depois de o terramoto ter terminado.
Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor





