
Neste contexto de crescente complexidade migratória e renovados desafios ao pacto social, o pacote legislativo aprovado pelo Governo representa uma viragem ponderada na forma como Portugal gere as políticas de nacionalidade, imigração e controlo de fronteiras. Longe de se tratar de um recuo em matéria de direitos, estas medidas devem ser interpretadas como um esforço de reenquadramento da imigração dentro de princípios de exigência, integração e sustentabilidade social.
É, desde logo, importante salientar que a nacionalidade é uma expressão de pertença a uma comunidade. Nesse sentido, a introdução de critérios mais rigorosos para a sua atribuição a descendentes de imigrantes ou a estrangeiros residentes, incluindo o conhecimento da língua, da cultura e do funcionamento das instituições democráticas, é indispensável à preservação da coesão social e à credibilidade do estado de direito. A cidadania plena implica direitos, mas também deveres e é esta simetria que se pretende restaurar.
O princípio de ligação efetiva à comunidade, agora reforçado, recupera um critério de racionalidade jurídica que vinha sendo esvaziado por regimes de naturalização excessivamente permissivos, como aquele que vigorava para os descendentes de judeus sefarditas, e que é revogado nestas medidas.
A nacionalidade, como núcleo identitário de uma soberania partilhada, deve assentar em vínculos verificáveis ao invés de automatismos legislativos ou abstração histórica de uma ascendência longínqua.
No domínio da imigração, a redefinição das vias de entrada, com o fim dos vistos de procura de trabalho para pessoas não qualificadas e a introdução de requisitos mais exigentes no reagrupamento familiar, responde a um diagnóstico que, por mais incómodo que seja, não pode ser ignorado.
Portugal viveu nos últimos anos uma fase de imigração desregulada, com impactos visíveis na sobrecarga dos serviços públicos, no mercado habitacional e na perceção de insegurança por parte da comunidade.
A imposição de critérios como estabilidade laboral, alojamento digno e aprendizagem da língua, para o reagrupamento familiar, está em linha com as diretivas europeias. A integração não pode ser um processo passivo ou unilateral. Requer investimento e esforço mútuo do estado e dos migrantes.
A criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras na PSP, por seu turno, representa o regresso de um vetor de soberania, o controlo efetivo das fronteiras. Num estado de direito, a hospitalidade tem fronteiras bem definidas e o acolhimento só pode existir onde há capacidade de ordenar e fiscalizar fluxos. Não se trata de criminalizar a imigração, mas de impedir que a ausência de controlo alimente redes de tráfico humano, exploração laboral ou abusos do sistema.
Estas reformas são tanto mais meritórias quanto evitam a retórica xenófoba ou securitária que marca o discurso político europeu. Mantêm-se os compromissos com a CPLP e os valores humanistas, enquanto se reequilibra o sistema através da reposição de exigência. A prorrogação extraordinária de autorizações de residência, até outubro, é sinal de que há sensibilidade para a realidade vivida por milhares de imigrantes que aguardam regularização.
O grande desafio será assegurar a operacionalização eficaz destes diplomas. De pouco servirá legislar se as novas regras não forem aplicadas com celeridade, clareza e justiça. Importa dotar as instituições, em particular a AIMA e os novos serviços de fronteira, dos recursos humanos e tecnológicos indispensáveis à implementação de um paradigma migratório mais ordenado, justo e comprometido com o bem-estar coletivo.
Portugal tem a oportunidade de redefinir a sua política de imigração como uma política de estado transversal, racional e livre de clivagens ideológicas. Com estas medidas, dá-se um bom passo, e compete ao Governo garantir que este novo equilíbrio entre abertura e exigência se traduza numa sociedade mais coesa, segura e integrada.
Diogo Fernandes Sousa
Escritor do Livro “Rumo da Nação: Reflexões sobre a Portugalidade”
Professor do Instituto Politécnico Jean Piaget de Vila Nova de Gaia