
O humor é uma expressão nobre da inteligência democrática. Quando bem exercido, revela a hipocrisia do poder, desmonta os absurdos da ideologia e convida à reflexão crítica. Mas quando se converte em arma de escárnio sistemático contra os mesmos alvos, torna-se mero prolongamento de um certo domínio cultural — moralista, previsível, impune. O riso, em vez de libertar, oprime. Em vez de questionar, impõe.
Hoje, em Portugal, os humoristas de referência tornaram-se fortes com os fracos e fracos com os fortes. Gozam com quem não tem palco, atacam quem não tem rede. Veja-se o caso de Gonçalo da Câmara Pereira, há anos reduzido a caricatura por ser monárquico, por falar de forma pausada, por ser diferente. O debate de ideias foi substituído pela zombaria de classe.
O humor é usado para expulsar do espaço público quem não pertence à bolha.
O padrão repete-se. Cristina Ferreira foi diariamente ridicularizada de forma pouco “católica” por Joana Marques, na Renascença, num formato em que não tem direito de resposta. Não se discutiram as opções televisivas — escarneceu-se da voz, do entusiasmo, da forma como se vestiu ou chorou. O que antes se chamava bullying, agora passou a ser rubrica.
E o que dizer de Joana Amaral Dias? Foi alvo de gozo público por Ricardo Araújo Pereira pelo seu aspeto físico, como se a idade ou a cirurgia estética fossem motivo legítimo de chacota. E isto vindo de círculos que se afirmam feministas. O paralelo é inevitável: os mesmos que criticam — com razão — os piropos feitos por deputados a mulheres nos corredores da Assembleia da República, parecem não reconhecer que o achincalhamento do corpo feminino também pode vir do microfone com riso em fundo. É a mesma lógica do domínio, da redução da mulher a um objeto, ainda que em registo cool.
Entretanto, os grandes poderes passam ao lado. Os Gato Fedorento, ícones de uma geração, já vinham com alguns tiques desrespeitosos quando ousaram em tempos fazer um sketch em que um cidadão urinava na cara de Valentim Loureiro, no entanto calaram-se quando assinaram um contrato milionário com a MEO, então empresa pública. A partir desse momento, nunca mais se viu uma crítica direta a José Sócrates, Ricardo Salgado, etc… A rebeldia esvaneceu-se. O silêncio passou a ser sinal de estatuto.
Pior ainda foi o episódio de 2011, quando milhares de portugueses saíram à rua contra a austeridade. Em vez de escutarem o clamor do povo, os humoristas riram-se dele. Os Gato Fedorento foram aos EUA fizeram um sketch com Steven Seagal, ridicularizando os protestos, os cartazes, os indignados. Não houve empatia. Houve desprezo. Era a elite a rir-se do povo que ousava manifestar-se sem pedir licença ao humor urbano.
A verdade é que expressões como “Isto é gozar com quem trabalha” poderiam perfeitamente servir de slogan a um partido populista de extrema-direita. São frases curtas, agressivas, fáceis de memorizar, com o tom ressentido e zombeteiro que serve bem para alimentar a desconfiança contra a política, contra a cultura, contra tudo. O que se apresenta como humor progressista começa a resvalar para a linguagem emocional e corrosiva da antipolítica.
É engraçado ouvir pseudointelectuais espantados com o crescimento da extrema direita quando, humoristas e extremistas usam a mesma pá para escavar a cova da democracia.
Neste contexto, honra seja feita a figuras como Diogo Freitas do Amaral ou Mário Soares, que sempre recusaram participar nestes formatos de falsa leveza, no entanto foram diversas vezes a programas de Herman José e Nicolau Breyner.
Nestes novos programas dos humoristas que agora se defendem a propósito do caso dos “Anjos” quase como se uma irmandade esotérica se tratasse, estes senadores recusaram rir-se de si próprios em público, não por arrogância, mas por respeito à dignidade do cargo, das ideias e da história. Sabiam distinguir o humor da humilhação. Sabiam que nem tudo se resolve com uma gargalhada.
O país precisa de voltar a ter humor que pense. Humor que confronte o poder, não que o oculte. Humor que não tenha medo de rir dos ricos, dos banqueiros, dos impunes. Humor que não ache que Cristina Ferreira, Joana Amaral Dias, Gonçalo da Câmara Pereira ou um miúdo vulnerável dos Ídolos a quem acrescentaram orelhas gigantes são os grandes inimigos da democracia.
Porque quando os humoristas passam a vida a gozar com quem é fraco, o país corre o risco de só se rir dos mais fracos…e ainda por cima por alguns humoristas que já não são pobres nem fracos…
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor