A Pandemia… dos ignorados – Joaquim Brites
Desde o aparecimento do primeiro caso de COVID-19, em Portugal, têm-se sucedido medidas de proteção, de isolamento, de distanciamento social, de regras de higiene e tantas, tantas outras normas, deliberações, Decretos-lei, Despachos, etc., que não caberiam num pequeno texto como este. Com as muitas aulas de higiene, que têm entrado pelas nossas casas, até aprendemos (espero eu) a lavar as mãos com um temporizador em forma de uma música, que todos conhecemos. Os Parabéns. Também aprendemos a não nos aproximarmos demais das outras pessoas, a não nos cumprimentarmos, como tossir, como espirrar, entre outras novas regras sociais que, queremos, sejam temporárias.
Na expetativa de que soubéssemos mais, tentaram ensinar-nos, como se fôssemos todos muito burros, quais eram os grupos de maior risco. Disseram-nos que as pessoas idosas, considerando aquelas que têm mais de 70 anos, eram mais vulneráveis e, por conseguinte, potenciais portadores de maiores morbilidades. Um termo que muitos não conheciam e que, ainda hoje, continuam sem saber exatamente o que é. Falaram-nos, também, das pessoas portadoras de doenças crónicas, dos imunodeprimidos ou de várias outras patologias consideradas graves e, por isso, mais sensíveis e menos resistentes a um possível contágio com a COVID-19. Porque não se podiam lembrar de todos, foi exatamente deste último grupo que se foram esquecendo.
Depois de tantas aulas, vieram as ordens para que ficássemos em casa. E ficámos! Durante os últimos quase três meses, uma grande parte da população recolheu-se nas suas casas. Alguns, sem a possibilidade de trabalhar dado o encerramento de algumas empresas. Outros, a quem foi dada essa possibilidade porque o tipo de profissão, local de trabalho e recursos, o permitiam, passaram ao regime de teletrabalho. Outra lição que nos deram. Podemos, por isso, afirmar que, durante este tempo, aprendemos a conviver com algumas realidades novas, que não faziam parte do nosso quotidiano.
O que não pudemos aprender, ou melhor dizendo, relembrar, é que neste grande grupo de pessoas consideradas vulneráveis, podemos considerar que foram ignoradas muitas delas. Refiro-me aquelas que são apelidadas de “pessoas com deficiência”. E são muitas! Nas suas múltiplas formas. E muitas que trabalham, apesar das suas incapacidades ou limitações físicas. Que lutam pela sua sustentabilidade. Muitas, ainda, que, apesar da sua dependência de terceiros, mantêm intactas as suas capacidades cognitivas e contribuem para o PIB nacional. Sobre essas, e para essas, não ouvimos uma palavra ao longo deste período. Genericamente, a pandemia fez esquecer a sua vulnerabilidade e todo o trabalho de inclusão e de reabilitação que muitos, como eu, têm tentado trazer para a ordem do dia, nos últimos anos.
Todos sabemos que, tomar decisões sobre o encerramento de alguns serviços, públicos ou privados, ou de suspensão de alguns outros, como um campeonato de futebol, por questões de segurança e de saúde pública, não é uma tarefa fácil. Mas, ouvir e responder a questões concretas, colocadas por quem sente e vive outros problemas não menos importantes, é um dever que cabe apenas aos decisores. Não posso, por isso, deixar de lamentar que não tenham sido dadas as respostas que se exigiam relativamente a este grupo, também muito vulnerável. Muitas destas pessoas, porque de risco, recolheram às suas casas por não poderem trabalhar expostas a ele. Com maior ou menor dependência dos cuidadores habituais, não viram assegurada qualquer proteção no seu acompanhamento, obrigatório e sem alternativas.
Muitas outras, algumas com cuidadores habituais demasiado cansados, com pouca retaguarda familiar, ou mesmo sem nenhuma, limitaram-se a permanecer nessa dependência e sempre à espera de alguém que os ajudasse nas suas atividades de vida diária. Estão nesta situação, muitas centenas de pessoas com deficiência, talvez, até, milhares. Algumas delas, foram integradas no Projeto Piloto do MAVI – Movimento de Apoio à Vida Independente, regulamentado pelo Dec. Lei 129/2017, que procura afirmar-se como uma alternativa às necessidades de apoio, que lhes confiram uma menor dependência, através do dedicado e inesgotável esforço dos seus Assistentes Pessoais. Estes últimos, apesar dos riscos, têm sido motivados pelas equipas dos CAVI (Centros de Apoio à Vida Independente) espalhados pelo país, a não desistirem, e incansáveis na sua tarefa de cuidar. Para eles, e para aqueles de quem cuidam, não houve nenhuma lição sobre distanciamento social ou sobre o contacto físico. Apenas porque isso não é possível evitar. Também não se ouviu ninguém a pronunciar-se sobre a importância, ou não, de testar esta população.
Para além da ignorância já referida, falta dizer que não chegaram aos CAVI quaisquer equipamentos de proteção individual, provenientes de qualquer organismo tutelado pelo Estado. Foi necessário adquiri-los no mercado, a preços proibitivos e em quantidades racionadas, ou mendigá-los junto de algumas autarquias e de generosas empresas privadas que se disponibilizaram para apoiar estas causas. Tudo isto contrasta com a euforia da reabertura dos CAO, das creches e jardins-de-infância e da tentativa de regresso à normalidade nos lares residenciais para os vulneráveis idosos, para quem foram prometidos testes e todas as condições de EPI’s. Esperamos, todos, que estes também não sejam ignorados.
Joaquim Brites / Presidente da APN – Associação Portuguesa de Neuromusculares